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O mundo quase perfeito
Quando se é criança numa suposta casa normal, as coisas são apresentadas para nós de uma forma, no mínimo, relativamente simpática. Embora a família não seja o supremo modelo a ser seguido em termos de estruturação, tudo parece ser bonito.

Mesmo que o pai, hipoteticamente, não seja muito sóbrio e que os cuidados para que o filho não assista às cenas desarmônicas experimentadas pelos cônjuges não sejam prudentemente resguardados, o brilho dos olhos e a candura do coração de um anjinho conseguem ter mais força do que os deselegantes aviltamentos a que a matriarca aceite submeter-se.

E se, por ventura, as agressões não forem apenas verbais e as paredes do dormitório infantil combinadas com o pressionamento do macaquinho de pelúcia nos ouvidos não proporcionarem as circunstâncias sinergéticas adequadas para poupar os tímpanos do novato deste mundo de receberem informações sonoras indicadoras de que a estória da princesa – que vira no programa vespertino da emissora da rede pública de televisão – não é rigorosamente idêntica aos episódios de investidas físicas insuficientemente afáveis do genitor em relação à genitora, ainda havia o colinho da vovó aos domingos com direito a chá e torradinha.

Conquanto as previsões generosas da boa velhinha não venham a confirmarem-se num futuro próximo e os coleguinhas de escola não comunguem da mesma opinião benévola da anciã carinhosa, é sabido que os devaneios excessivos da septuagenária gentil acerca do netinho ingênuo foram proferidos com as melhores intenções.

A despeito da necessidade de demanda por um terapeuta para sanar as fissuras psíquicas causadas pelo incutimento hiperbólico de qualidades utópicas na mente do pequeno ser humano sobre ele mesmo – que culminou num distúrbio vivencial diagnosticado pelo criterioso perito especializado no encéfalo como "complexo de messias" – é fundamental que a gratidão pela benquerença da vózinha seja manifestada.

Independentemente de o psicólogo ser capaz de atingir um desfecho satisfatório no que tange ao quadro clínico do paciente cujos pais pagam o olho da cara pela consulta para que o profissional resolva os problemas que eles próprios criaram e não deram conta, o resultado será sempre positivo, dado que à criança serão entregues subsídios inéditos que a possibilitarão ser levada a um raciocínio profundo. É preciso bastante estudo para compreender este axioma. Você vai conseguir entender. Eu acredito em você.

De modo ocasional, quiçá, as palavras articuladas pelos educadores domésticos não evidenciem uma congruência geometricamente exata com os procedimentos práticos reproduzidos, entretanto, o recém-concebido elemento material desta presente existência é deveras viçoso para deixar de vislumbrar doçura no que ocorre em seu entorno.

E como o caráter teatral semiafetivo desempenhado pelos parentes de grau fraterno de quem nos gerou ainda não fora plenamente esclarecido, é possível desfrutar por alguns anos da extensão de um sentimento de aconchego amoroso.

Somente ao raiar da puberdade é que algumas presumíveis queimaduras de sol não lograrão um êxito tão relevante assim em serem evitadas com o uso da peneirinha do delírio. Ao cabo da década incipiente da vida, talvez, a colheita da horta cujas sementes exclusive poderiam ser lavradas com o auxílio dos pedagogos íntimos revele um fruto de degustação insípida, ao menos se analisado sob uma conjectura otimista.

"Apesar disto, resta-nos o advento da trajetória adulta. Finalmente, a maturidade! Agora, sim, é chegado o instante de acelerar em direção à linha do horizonte e competir com chances iguais com todos os outros para realizarmos os nossos sonhos mais lindos!". Seria esta a minha fala se a citação anterior suportasse uma pronúncia com uma categoria de verossimilhança um pouco mais alta, caso não fosse encargo sine qua non e urgente meter-se em busca do preenchimento das lacunas didáticas remanescidas da fase primária da jornada do rebento que não foram supridas – nem sequer em seus alicerces básicos – pelos responsáveis naturais no momento oportuno. Nada obstante, são apenas alguns milhões de quilômetros de diferença que se pode suplantar em algum tempo e, um dia, chegar lá. Bastam algumas décadas e pimba! É só correr pro abraço!

Antes tarde do que nunca. Eu li num livro de autoajuda que um cara foi iniciar a faculdade de medicina aos oitenta e quatro anos de idade. Se ele pode, você também pode. Foi o que o autor da obra disse. E ele é PHD, viu?

E para quem não é do tipo apetecido pela erudição, fica a dica de um menu espiritual com opções fresquinhas que podem ser uma excelente pedida. "Tá daqui, ó!". Tem igreja pentecostal, terreiro de macumba, centro mesa branca, templo Hare Krishina e muito mais! Pra todos os gostos e bolsos. É só escolher e pedir.

Eu, por exemplo, decidi solucionar todas as minhas frustrações com uma viagem ao Tibet. Voltei com o propósito de virar vegano e despedir-me dos antigos hábitos consumindo o meu último quiche de frango. Ao ingeri-lo, comecei a contorcer-me pelo chão, rolei escada abaixo e acordei no hospital. Fiquei feliz, pois, no fim das contas, eu havia evoluído a ponto de sentir a dor do pobre bichinho com o qual pretendia nutrir-me. Alcancei, enfim, o estágio de desenvolvimento superior dos iluminados. Pronto estava para uma vida pura e sem carne em todos os aspectos. Porém, logo o doutor entrou no quarto e deu-me a notícia de que, na verdade, a torta estava estragada e o que eu tive foi um desarranjo intestinal. O que não deixou de ser um progresso. Aprendi a prestar mais atenção no odor dos alimentos.

Mingau Ácido (Marcelo Garbine)
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