Orgulho de uma sociedade que respeita as minorias e os mais fracos
No primeiro domingo de janeiro de 2014, enquanto todos os paulistanos refugiavam-se no litoral, estava eu em plena linha amarela do metrô, entre as estações Pinheiros e Faria Lima.
Eram apenas três os meus convizinhos de vagão: um homem de cerca de cinquenta anos, lendo o jornal; um funkeiro, escutando o seu MP3 – com fone de ouvido (graças a Deus) – e uma senhorinha e seus respeitosos sessenta e poucos anos, em pé, por livre e espontânea vontade, mesmo com a opção de deitar em qualquer banco ou até armar a sua barraca de camping, caso tivesse interesse.
No assento de coloração cinza, que escolhi pra sentar-me, estava escrito: “assento preferencial para gestantes, mulheres com crianças de colo, idosos e deficientes físicos. Na ausências de pessoas nestas condições, o uso é livre”.
Estando praticamente todos os assentos desocupados, não senti remorso algum ao usufruir deste banquinho.
O ar condicionado refrescava o dia quente e eu aproveitava pra compor mais uma letra de música. Tudo parecia muito tranquilo e agradável, exceto por conta da visão do inferno com a qual me deparava, todas as vezes que lançava mão do meu direito civil de olhar pra frente.
Aquela dona e os seus dignos cabelos brancos (respeite minhas cãs, rapazinho), fitava-me com semblante de poucos amigos. Os sinais do tempo, que envolviam todos os centímetros cúbicos do seu cartão de visita de anciã, enrijeciam com dobras tão profundas que me davam a péssima sensação de ter desquitado-me do meu – sempre companheiro – senhor saco escrotal.
Não entendi tamanha ira – rebeldia púbere tardia e sem causa, que chegava com mais de quarenta anos de atraso. Eu ainda me esforçava pra concentrar-me nos meus devaneios de poeta, sem deixar a minha caneta Bic brochar em consequência das espreitadelas da provável portadora de diabetes ou, com certeza, uma estereotipada e típica DIABETE, dançarina do diabo que fugiu do inferno.
Foi, então, que o transporte coletivo – acessado, por mim, em troca de três unidades da nossa moeda nacional corrente, que, por sua vez, obtive vendendo a minha humilde labuta de servidor público, ao contrário (faz-se mister lembrar) daquela velha do capeta, que adentrou gratuitamente – reduziu a velocidade e, finalmente, desacelerou, ao passo que uma voz feminina e robótica proclamava: “estação Faria Lima” e as portas abriam-se.
A ex-mocinha, logo, dirigiu-se até a saída, esbugalhou os seus olhos acarminados e tomou-me como alvo pela última vez, berrando com classe e doçura:
– Seu aleijado! Não esquece a sua muleta, seu aleijado! – Sendo irônica, é claro, pois não tenho nenhuma deficiência física.
O que terá sido a simpática matusalém nos idos da longínqua década de setenta? Uma generosa prostituta ou uma delatora de complacentes militantes políticos da esquerda comunista? Talvez...
E, na idade fragilizada, quando chega a hora dos maus pagarem por seus erros e dos bons estarem espiritualmente evoluídos a ponto de não se deixarem atingir, ela é uma senhora imunizada.
Existe algo de errado nisto? Claro que não. Afinal, nos shoppings centers há vagas exclusivas pra idosos. Eles precisam realmente disto. É a lei do meu querido Brasil.
No último sábado anterior ao natal de 2013, às nove horas da noite, vi um velhinho de terno e gravata estacionando o seu reluzente New Beatle vermelho numa ampla vaga reservada pra idosos. Espaço este que foi gentilmente cedido por centenas de motoristas, cidadãos como ele, que rodaram meia hora por todas as dependências do estacionamento, antes de desistirem das compras natalinas e regressarem aos seus lares, frustrados.
Nada mais justo, tendo em vista que o velhinho devia ter problemas de saúde gravíssimos e aquela bela e loiríssima moça, trinta anos mais nova, de vestido preto e salto alto, que segurava a sua mão, devia ser a sua dedicada enfermeira que, tenho certeza, trocava, assiduamente, a sua sonda.
Que devemos respeitar as pessoas pra sermos respeitados, tenho certeza, entretanto, a idade não deveria ser subterfúgio, principalmente, se lembrarmos que os canalhas também envelhecem e que o preconceito também pode ser exercido às avessas.
Alguns senhores de idade e pessoas que com eles se solidarizam, buscando chamar a atenção, adoram humilhar jovens que não estão viajando nos ônibus de graça.
Termino aqui, mandando um abração caloroso pro Orlandão Meia Noite, o apreciador de água ardente, do boteco aqui do lado de casa, que me chama, carinhosamente, de fantasminha desbotado, sempre que chego cansado do trabalho.
Mingau Ácido (Marcelo Garbine)
Eram apenas três os meus convizinhos de vagão: um homem de cerca de cinquenta anos, lendo o jornal; um funkeiro, escutando o seu MP3 – com fone de ouvido (graças a Deus) – e uma senhorinha e seus respeitosos sessenta e poucos anos, em pé, por livre e espontânea vontade, mesmo com a opção de deitar em qualquer banco ou até armar a sua barraca de camping, caso tivesse interesse.
No assento de coloração cinza, que escolhi pra sentar-me, estava escrito: “assento preferencial para gestantes, mulheres com crianças de colo, idosos e deficientes físicos. Na ausências de pessoas nestas condições, o uso é livre”.
Estando praticamente todos os assentos desocupados, não senti remorso algum ao usufruir deste banquinho.
O ar condicionado refrescava o dia quente e eu aproveitava pra compor mais uma letra de música. Tudo parecia muito tranquilo e agradável, exceto por conta da visão do inferno com a qual me deparava, todas as vezes que lançava mão do meu direito civil de olhar pra frente.
Aquela dona e os seus dignos cabelos brancos (respeite minhas cãs, rapazinho), fitava-me com semblante de poucos amigos. Os sinais do tempo, que envolviam todos os centímetros cúbicos do seu cartão de visita de anciã, enrijeciam com dobras tão profundas que me davam a péssima sensação de ter desquitado-me do meu – sempre companheiro – senhor saco escrotal.
Não entendi tamanha ira – rebeldia púbere tardia e sem causa, que chegava com mais de quarenta anos de atraso. Eu ainda me esforçava pra concentrar-me nos meus devaneios de poeta, sem deixar a minha caneta Bic brochar em consequência das espreitadelas da provável portadora de diabetes ou, com certeza, uma estereotipada e típica DIABETE, dançarina do diabo que fugiu do inferno.
Foi, então, que o transporte coletivo – acessado, por mim, em troca de três unidades da nossa moeda nacional corrente, que, por sua vez, obtive vendendo a minha humilde labuta de servidor público, ao contrário (faz-se mister lembrar) daquela velha do capeta, que adentrou gratuitamente – reduziu a velocidade e, finalmente, desacelerou, ao passo que uma voz feminina e robótica proclamava: “estação Faria Lima” e as portas abriam-se.
A ex-mocinha, logo, dirigiu-se até a saída, esbugalhou os seus olhos acarminados e tomou-me como alvo pela última vez, berrando com classe e doçura:
– Seu aleijado! Não esquece a sua muleta, seu aleijado! – Sendo irônica, é claro, pois não tenho nenhuma deficiência física.
O que terá sido a simpática matusalém nos idos da longínqua década de setenta? Uma generosa prostituta ou uma delatora de complacentes militantes políticos da esquerda comunista? Talvez...
E, na idade fragilizada, quando chega a hora dos maus pagarem por seus erros e dos bons estarem espiritualmente evoluídos a ponto de não se deixarem atingir, ela é uma senhora imunizada.
Existe algo de errado nisto? Claro que não. Afinal, nos shoppings centers há vagas exclusivas pra idosos. Eles precisam realmente disto. É a lei do meu querido Brasil.
No último sábado anterior ao natal de 2013, às nove horas da noite, vi um velhinho de terno e gravata estacionando o seu reluzente New Beatle vermelho numa ampla vaga reservada pra idosos. Espaço este que foi gentilmente cedido por centenas de motoristas, cidadãos como ele, que rodaram meia hora por todas as dependências do estacionamento, antes de desistirem das compras natalinas e regressarem aos seus lares, frustrados.
Nada mais justo, tendo em vista que o velhinho devia ter problemas de saúde gravíssimos e aquela bela e loiríssima moça, trinta anos mais nova, de vestido preto e salto alto, que segurava a sua mão, devia ser a sua dedicada enfermeira que, tenho certeza, trocava, assiduamente, a sua sonda.
Que devemos respeitar as pessoas pra sermos respeitados, tenho certeza, entretanto, a idade não deveria ser subterfúgio, principalmente, se lembrarmos que os canalhas também envelhecem e que o preconceito também pode ser exercido às avessas.
Alguns senhores de idade e pessoas que com eles se solidarizam, buscando chamar a atenção, adoram humilhar jovens que não estão viajando nos ônibus de graça.
Termino aqui, mandando um abração caloroso pro Orlandão Meia Noite, o apreciador de água ardente, do boteco aqui do lado de casa, que me chama, carinhosamente, de fantasminha desbotado, sempre que chego cansado do trabalho.
Mingau Ácido (Marcelo Garbine)
Essa também é legal!
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