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As duas últimas Coca-Colas do deserto
Naquela quinta-feira, cheguei quarenta minutos mais cedo ao trabalho e passei na padaria pra tomar café da manhã. Pedi uma média com leite e um croissant, liguei o meu notebook e comecei a escrever.

Estava concentrado, mas não pude deixar de prestar atenção no diálogo da mesa vizinha. Nela, dois advogados aguardavam o início das atividades forenses. Conversavam sobre uma ação de rito ordinário em trâmite na vigésima oitava vara cível. Era um processo de indenização por danos morais.

Os rábulas, enquanto cuspiam jargões advocatícios pros quatro cantos daquela panificadora secular, fundada em 1872, faziam questão de mirar de soslaio os três candangos ignorantes que passavam a constituir público estupefato, e enfatizavam palavras estranhas ao vocábulo dos matutos.

O chicaneirinho mais moço – e mais empolgado também – repetiu as expressões “embargos infringentes” e “mandado de injunção” uma meia dezena de vezes fora do contexto, haja vista que se tratava de uma açãozinha corriqueira de primeira instância. Mas, pros que querem saborear a convenção social que denomina doutores os meros graduados, sem precisar fazer o sacrifício de cursar medicina, aquele posicionamento arrogante é um deleite. O desprezo pelo humilde cliente era escancarado. O operador de máquinas, seu Ayrton, havia-se sentido ofendido pelo patrão, que estabelecera a rotina de revista dos empregados, todos os dias, ao fim do expediente.

Fatigado por falar de trabalho durante o desjejum, o causídico mais velho, que, ao contrário do estreante colega, já estava farto de aplausos de leigos, cortou o assunto, alegando que existiam prosas mais notórias a serem desfrutadas por dois intelectuais, sugerindo que o assunto em voga passasse a ser a repercussão da estatização de duas refinarias da Petrobrás por Evo Morales, tão explorado à exaustão naquele finado ano de 2007.

O macróbio senhor dos códigos jurídicos introduziu o novo discurso com o prólogo no qual ressaltava a superioridade de importância dos debates relevantes pra conjuntura política nacional em relação ao indigno seu Ayrton, seu cliente operário. Bom, talvez, aos doutos olhos, o seu Ayrton seja mesmo apenas um ínfimo décimo da escória dos esgotos do mais decadente bairro do subúrbio do Congo, porém, em sua carteira de clientes, havia algumas dúzias de “seus ayrtons”, que estavam pagando o cafezinho. Isto, por si só, pode parecer clichê. Pois, então, meu caro Leitor exigente, vamos alavancar o nível do nosso bate-papo (muito confortável pra mim, afinal somente eu falo).

Se não fosse por causa do seu Ayrton, ambos os juristas estariam, neste momento, confinados em seus escritórios, e não teriam se locomovido com seus veículos automotores, consumindo gasolina, pneus e freios, nem teriam pago a caixinha do frentista que limpou o para-brisas, nem dado mais uma contribuiçãozinha pro comércio de bens de consumo alimentício da região central do município, nem mandado o estagiário tirar fotocópia dos autos, etc.

Isto só pra falar do consumo direto porque o frentista do posto de combustível usou o dinheiro da gorjeta pra comprar leite pro filho, o dono do posto aumentou o faturamento e trocou de aparelho de TV, o estoque de pó de café da padaria acabou antes do tempo e o fornecedor vendeu mais – estendo o benefício ao setor primário, que elevou o plantio – os pneus do carro foram substituídos com antecedência, a lan house, que produziu as fotocópias, por consequência, demandou mais papel e toner e até contratou mais um funcionário, ...

E o vil metal foi passando de mão em mão, chegando a um vadio operador de home broker, que só fica em casa fazendo análise gráfica e especulando na bolsa de valores, comprando e vendendo ações de empresas de terceira linha, que ele chama de papéis, mas que não são mais papéis, são só impulsos eletrônicos. Mas é graças a estes impulsos eletrônicos que os ativos financeiros ganham liquidez e despertam o interesse de investidores que adquirem lotes no mercado primário, fazendo que os empreendimentos captem recursos pecuniários, gerem empregos e paguem impostos pro governo, que, por sua vez, serão aplicados no bem comum ou contribuirão com a saúde monetária dos paraísos fiscais.

E tudo gira. O mundo é feito de seus ayrtons, que, unidos num ente abstrato, contribuem, inclusive, na hora da morte com o fluxo de caixa da funerária ou, na hora da vida, com o fluxo de caixa das igrejas pentecostais.

E o inútil do filho do seu Ayrton que só fica em casa assistindo à televisão? Inútil, não, olha o respeito. É graças a ele que existem empresas que medem o índice de audiência televisiva e patrocinadores que pagam pelo anúncio da mídia eletrônica.

E o transviado do sobrinho do seu Ayrton que andou em más companhias e optou pelas veredas da delinquência, acabando trancafiado? Também está contribuindo com a renda familiar do carcereiro e dos empreendedores que fornecem marmitex pros presidiários. E, enquanto solto, contribuiu pro desenvolvimento tecnológico da indústria de alarmes e pro crescimento da oferta de estacionamentos seguros.

E o mérito não é só do sobrinho transviado, é do cunhado viado do seu Ayrton também. Um importante elo da economia que prostitui o seu corpinho masculino nos semáforos da rua Rego Freitas e tem o poder de transferir renda do bolso de grandes advogados que apreciam o universo do prazer transex pras contas bancárias das lojas de grife homossexual. Viado e transviado estão contribuindo economicamente a todo vapor.

Esta minha masturbação mental fez-me esquecer os dois oragos do povo, que não mais proseiam elegantemente e bebericam seus cafezinhos na longeva padoca. As cortinas fecharam-se, seus lugares foram ocupados por outros paulistanos e os três trabalhadores braçais não estão mais boquiabertos e podem cuidar de seus afazeres mais familiares e úteis.

O fórum abriu as suas portas e pra lá rumam os posudos falastrões, a cuidar dos interesses judiciais do tão menosprezado seu Ayrton. E a conversa acerca das estripulias do presidente boliviano, que não chegou a nenhuma conclusão, foi findada, sem que fosse por eles percebido que a macroeconomia é tão importante quanto a microeconomia, uma composta por poucos tomadores de decisões e a outra por milhões de seus Ayrtons! Ayrtons! Ayrtons! Ayrtons da Silva do Brasil!

Mingau Ácido (Marcelo Garbine)

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A versão em áudio deste texto – transmitida pela Rádio WRA de Santo André – SP – e pela Rádio Além Fronteiras de Portugal – pode ser ouvida na subseção Crônicas para Rádio da Seção Rádios deste site.

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Ilustração de Nanci Penna

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