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Simplesmente, funcione!
Existem coisas que eu não quero saber como funcionam. Quero que simplesmente funcionem. Eu não quero saber como funciona a geladeira da minha casa. Não sou técnico especialista em eletrodomésticos e nem quero ser. Mas, quando eu for pegar a minha Coca-Cola, quero que ela esteja gelada. Isto, de igual modo, vale para quando eu acendo a luz com o intuito de ler um livro ou quando eu coloco o meu pãozinho com margarina no forno microondas. Eu paguei pelos eletrodomésticos e pago todos os meses as contas de luz da minha residência. Paguei para desfrutá-los. No dia em que eu quiser aprender sobre seus funcionamentos, eu vou fazer um curso específico.

Mas não é apenas o conjunto de parafernálias que infesta o meu lar que me custa dinheiro e que eu, obviamente, quero ver em plena condição de usufruto para justificar as minhas suadinhas horas de trabalho investidas nas estrovengas.

Há um aparelho bem grandão que sai muito mais caro para o meu humilde bolsinho. E, aqui, digo "grandão" como diria uma criança diante de um adulto. Este aparelho é o sistema jurídico brasileiro. Seja de primeira ou de segunda instância, estadual ou federal, do trabalho ou militar, eleitoral ou suprema corte.

Eu não sou ignorante e nem tenho cérebro preguiçoso. Gosto de adquirir conhecimento em diversas áreas que são de meu interesse. Aprecio explorar o campo jurídico também, apesar da doutrina do direito não estar na lista das minhas disciplinas prediletas.

Imagine que eu chegue à minha casa cansado, depois de mais um dia de trabalho, depois de mais um leão morto, pois eu sou um assassino de leões. Mato um todos os dias.

Aí eu tomo o meu banho quentinho, como a minha jantinha, visto o meu pijama e preparo-me para uma merecida noite de sono. Mas, antes, eu vou relaxar um pouco porque eu não sou de ferro. Eu vou assistir a um filme. Então eu ligo o meu velho televisor de tubo de vinte polegadas. O filme é envolvente. O enredo é intrigante. A estória é agradável. Os atores são sensacionais. Mas a imagem não está nada boa. Imagem vai, imagem vem, some, reaparece. Esta porcaria está com defeito. Eu vou ler um livro que eu ganho mais. Amanhã, eu levo esta geringonça ao conserto.

No dia seguinte, na assistência técnica, eu entrego o aparato eletrônico a um profissional especializado. Depois de rabiscar os seus garranchos num papelzinho com um número de quatro algarismos no alto da folha, a famigerada ordem de serviço, ele liga a televisão para ver qual é o defeito. Imagem vai, imagem vem, some, reaparece.

– O problema do seu aparelho é no canhão eletrônico.

– Na semana passada, eu já trouxe a minha televisão aqui. Talvez seja melhor eu comprar uma nova.

– Seu ignorante! Vai estudar, seu mentecapto! Na semana passada, o problema da sua TV era no par de bobinas!

– Mas eu acho que uma coisa deve ter relação com a outra. É improvável que um aparelho eletrônico apresente dois problemas distintos em tão curto espaço de tempo.

– Olha aqui, seu energúmeno, eu aceito ser contestado por pessoas qualificadas com opiniões coerentes. Tenho prazer em debater com quem pesquisa. A minha bronca é com ignóbeis retardados como você. Vai estudar, imbecil!

Parece surreal? Pois existe alguém assim. Só que ele não é técnico em eletrônica. Ele é um jornalista e discursa para uma audiência de milhares de destinatários num programa diário de rádio sobre política. E eu o ouço todos os dias. Não sou mulher de malandro, mas admiro este comunicador.

Eu preparo o meu sal de fruta e ligo o rádio. Tem que ter estômago para ouvir esse cara. Os seus malabarismos verbais insultam a lógica e a inteligência do público, mas ele fala com tanta segurança que muita gente é persuadida.

Defensor das instituições legais, compara aprisionamento preventivo com cárcere perpétuo, servindo-se da premissa de que ambos não têm um prazo prévio estipulado e, por causa disto, agridem uma cláusula pétrea da constituição.

Eu também quero que a presunção de inocência prevaleça, mas sem chegar ao ponto de exigir demais da flexibilidade dos surrados tímpanos populares com analogias heterodoxas. Mas ele chama de ignorante quem se revolta com os habeas corpus concedidos a políticos corruptos. Seus argumentos são meras interpretações da lei e não verdades absolutas. Seriam ótimos se proferidos pelos advogados dos delinquentes de colarinho branco. E eu só quero que a justiça funcione e puna os infratores. Simples.

Os tecnólogos resolvem vários pepinos com uma singela chave de fenda. Creio que o mesmo instrumento não possa ser manuseado para reparar danos na política e na justiça porque eu sou um democrata. Penso que a tortura e a violência não sejam viáveis. Nem teoricamente, pois eu quero manter o nível do texto. E as contrariedades devem ser solucionadas de frente e não pela retaguarda. Nem mesmo pela retaguarda de um ministro do Supremo Tribunal Federal que me aborrece. Relaxem as suas fendas, senhores magistrados, pois não utilizarei a minha chave de fenda em vossas excelências.

Eu só levei a minha televisão à assistência técnica porque esperava vê-la funcionando. A minha ambição é trivial: eu dou o dinheiro ao técnico e ele faz a minha TV funcionar. Não posso usar a mesma linha de raciocínio para apoiar a minha esperança em relação à justiça porque eu não tenho a alternativa de deixar de pagar os impostos.

Mingau Ácido (Marcelo Garbine)
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