O homem mais velho do mundo
Quando eu tinha dezoito anos, fui para outro estado da federação para fazer uma faculdade.
Na residência de estudantes na qual eu morava, um amigo meu disse que iria a um município que distava trinta quilômetros e lá conheceria o homem mais velho do planeta.
A ideia da visita ao asilo surgiu em virtude de um encargo decorrente da dissertação acadêmica da namorada dele.
Ela cursava medicina gerontológica e precisava entrevistar idosos com o objetivo de coletar dados para a sua monografia.
Era um sábado e eu estava tranquilo. Fui convidado para ir junto e aceitei. Não podia perder a oportunidade de ficar frente a frente com um baú de histórias vivo.
Eu já havia lido uma reportagem sobre ele. O noticiário impresso enfatizou que se tratava de um homem alegre e brincalhão, nascido na segunda metade do século XIX, que adorava contar causos e passava as suas horas cantarolando.
Nesta idade, eu ainda acreditava que os adultos eram capazes de ensinar coisas interessantes aos jovens.
De acordo com a minha cabeça inocente, quanto mais longevidade o ser humano tivesse, mais deveríamos prestar atenção nele para abstrairmos suas ricas experiências e aprendermos sábias lições que aplicaríamos no defluxo de toda a nossa prática existencial.
Depois de tantos calendários trocados na parede da cozinha, eu penso:
"Caramba, cara! Você tinha dezoito anos ou cinco?".
"Você já era bem grandinho para ter uma visão ilusória desse jeito. Nunca ouvira falar em corrupção, por exemplo?".
"E você não era uma menininha para enxergar o universo tão cor-de-rosa assim!".
Claro que eu era consciente de que pelas ruas trafegavam ladrões, tarados e gente mau caráter de qualquer ordem, mas eu interpretava isto como um macrocosmo paralelo, algo deste tipo.
Um sujeito de cabelos brancos e dobras na face que indicavam o prazo fluído de estada em seu tronco carnal, a meu ver, era uma versão corpórea do museu do Ipiranga que eu fiquei encantado em percorrer aos sete anos de vida.
Toda vez que eu pegava um ônibus, não podia ver uma bengala ou um bigodão desbotado, que já ia levantando e cedendo o meu assento ao matusalém.
Até um motorista de um destes coletivos, certa feita, olhou para a minha cara com pena e indagou se eu não sabia que os canalhas também envelhecem.
A microtese do operador do veículo girava em torno de que, por trás das peles franzidas dos debilitados e gastos cidadãos poderiam estar, potencialmente, assassinos ou pervertidos sexuais que, chegado o momento do confronto com as consequências, estariam sendo indevidamente poupados.
A sua proposição foi ainda mais ousada ao alegar que os ignóbeis desfrutavam de uma durabilidade mais extensa à custa de suas deformidades de escrúpulos, porquanto não tinham noção de toda a ruindade que disseminaram.
O corolário do axioma formulado pelo filosófico chofer de transporte público era que, quanto mais idoso fosse o indivíduo, mais provavelmente tratava-se de um verme repulsivo.
E se, por ventura, não fossem moralmente desprezíveis, teriam que ser o oposto, ou seja, evoluídos espiritualmente a ponto de não demandar gentilezas. Isto inferia que, em hipótese alguma, eu teria de oferecer a minha poltrona a um ancião.
Mas eu não concordava com o argumento dele. Aqueles pontinhos de interrogação curvadinhos, que mais pareciam sacolinhas de supermercado correndo o risco de serem arrastadas pelo vento, apenas podiam ter propagado a bondade durante os anos em que permaneceram na superfície desta bola de terra.
Ao longo do desenvolvimento da minha compleição física, eu não tive nenhum motivo para supor que as mazelas constituíssem tão somente um lugar alheio.
Muito pelo contrário, pois os desapontamentos estiveram presentes no interior do meu próprio lar e advindos dos meus progenitores, inclusive.
Entretanto, o debruçamento sobre a arte de traçar versos foi uma ferramenta útil para aliviar as lágrimas. E quiçá tenha reforçado a minha boa vontade em relação aos mais antigos.
No meio escolar, os hábitos demonstrados pelos educadores também não foram dos mais bonitos.
Foram diversas as manifestações dos lecionadores – ocasionalmente de forma verbal explícita – que alardeavam serem as remunerações pecuniárias pelo serviço prestado a única razão de comparecimento desgostoso àquela jaula.
Exceções sempre há. O professor de matemática era da espécie que carregava uma atmosfera condutora de ares provenientes de umas duas ou três décadas anteriores ao meu nascimento, realce do arquétipo que marcha com uma régua na mão e calça galochas em dias chuvosos.
E, por mais que nos empenhemos, não conseguimos imaginá-lo frequentando um toalete.
Todavia, um adolescente contestador não encontra dificuldade em forjar situações provocativas com o fim de descobrir a "verdadeira verdade".
Bastam poucos desafios pirracentos para que a máscara do protótipo de tradicionalista resvale e desça ao solo.
Um par de réplicas antagônicas às explanações didáticas foi suficiente para assistir a um espetáculo elegante do nobre pedagogo com direito a apagador de lousa estourando vidraça e gritos afeminados histéricos.
Mas ainda restava uma esperança: o culto titular da cadeira de língua portuguesa, um respeitável senhor septuagenário a quem os alunos atribuíram a alcunha de "mestre dos magos".
Ele usufruía de um comportamento enigmático, tamanha era a sua perícia em articular narrativas acerca de costumes arcaicos memoráveis para nortear as novas gerações.
Tantas pronúncias belas expressou o catedrático que – não sei se ele notou – eu o elevei à categoria de "meu guru".
Eu necessitava mesmo de um mentor. Carecia deparar-me exteriormente com o modelo que eu não tinha em casa.
Por isto, optei crer que ele só não lia as minhas redações extras por absoluta falta de tempo e para evitar sugestionar-me e comprometer o meu estilo literário.
E ele ainda esmerava-se no cuidado para não me deixar chateado. Fingia que lera os meus textos e fazia comentários genéricos, afirmando que gostou do que eu escrevi e que eu estava melhorando, mesmo quando inseri uma receita de bolo na folha pautada.
E que importância isto tem? Tudo era por uma causa justa: não me entristecer e incentivar-me. Pelo menos, esta era a minha fé.
E tão ferrenha era a minha convicção em sua índole superior que, uma vez, estando eu na fila do banco, ao vê-lo humilhar grosseiramente a mocinha do caixa, virei o rosto e aumentei o volume do meu walkman para preservar a minha certeza.
Porém, apesar das maneiras eticamente relapsas mostradas pelas pessoas maduras das quais eu tentei absorver elementos edificadores, o fato significativo era que o maior dos cofres de luz instrutiva estava na iminência de ser aberto.
Estávamos na estrada e, dentro de alguns minutos, eu me colocaria diante do homem que tinha cento e vinte anos.
Como não me emocionar? Quando eu nasci, ele já contava mais de um centenário completo!
Na entrada do abrigo, eu já me decepcionei...
O ambiente não era dos mais felizes. Meu amigo sacou a câmera fotográfica – daquelas cujo filme precisava ser levado a uma ótica para ser revelado – e desejou retratar os velhinhos.
Uma senhora foi logo dizendo que não queria aparecer na foto porque não prestava mais para nada.
A ressalva ficou por conta de outra velhinha que não parava de rir. Ela achou um barato o brinco na orelha do meu amigo.
E todos nós rachamos o bico quando ela o questionou sobre suas preferências íntimas:
– Você é bicha, garoto?
Minha ansiedade foi, finalmente, satisfeita. Numa cadeira de rodas disposta num canto escuro da sala, estava o homem que, segundo a matéria do jornal, havia conversado pessoalmente com a princesa Isabel.
Eu esperava vê-lo tomando um solzinho naquele dia em que não havia nenhuma nuvem num maravilhoso céu azul de maio, mas a minha empolgação era imensa e não dei muito valor à circunstância inusitada.
Começamos o diálogo com a arca de vivência em carne e osso.
Meu amigo, a namorada dele e eu cumprimentamos o idoso.
Mais do que depressa, eu me adiantei e fui perguntando:
– O que o senhor tem pra ensinar pra gente?
Olhando para o chão, o homem mais velho do mundo respondeu:
– Nada.
Mingau Ácido (Marcelo Garbine)
Na residência de estudantes na qual eu morava, um amigo meu disse que iria a um município que distava trinta quilômetros e lá conheceria o homem mais velho do planeta.
A ideia da visita ao asilo surgiu em virtude de um encargo decorrente da dissertação acadêmica da namorada dele.
Ela cursava medicina gerontológica e precisava entrevistar idosos com o objetivo de coletar dados para a sua monografia.
Era um sábado e eu estava tranquilo. Fui convidado para ir junto e aceitei. Não podia perder a oportunidade de ficar frente a frente com um baú de histórias vivo.
Eu já havia lido uma reportagem sobre ele. O noticiário impresso enfatizou que se tratava de um homem alegre e brincalhão, nascido na segunda metade do século XIX, que adorava contar causos e passava as suas horas cantarolando.
Nesta idade, eu ainda acreditava que os adultos eram capazes de ensinar coisas interessantes aos jovens.
De acordo com a minha cabeça inocente, quanto mais longevidade o ser humano tivesse, mais deveríamos prestar atenção nele para abstrairmos suas ricas experiências e aprendermos sábias lições que aplicaríamos no defluxo de toda a nossa prática existencial.
Depois de tantos calendários trocados na parede da cozinha, eu penso:
"Caramba, cara! Você tinha dezoito anos ou cinco?".
"Você já era bem grandinho para ter uma visão ilusória desse jeito. Nunca ouvira falar em corrupção, por exemplo?".
"E você não era uma menininha para enxergar o universo tão cor-de-rosa assim!".
Claro que eu era consciente de que pelas ruas trafegavam ladrões, tarados e gente mau caráter de qualquer ordem, mas eu interpretava isto como um macrocosmo paralelo, algo deste tipo.
Um sujeito de cabelos brancos e dobras na face que indicavam o prazo fluído de estada em seu tronco carnal, a meu ver, era uma versão corpórea do museu do Ipiranga que eu fiquei encantado em percorrer aos sete anos de vida.
Toda vez que eu pegava um ônibus, não podia ver uma bengala ou um bigodão desbotado, que já ia levantando e cedendo o meu assento ao matusalém.
Até um motorista de um destes coletivos, certa feita, olhou para a minha cara com pena e indagou se eu não sabia que os canalhas também envelhecem.
A microtese do operador do veículo girava em torno de que, por trás das peles franzidas dos debilitados e gastos cidadãos poderiam estar, potencialmente, assassinos ou pervertidos sexuais que, chegado o momento do confronto com as consequências, estariam sendo indevidamente poupados.
A sua proposição foi ainda mais ousada ao alegar que os ignóbeis desfrutavam de uma durabilidade mais extensa à custa de suas deformidades de escrúpulos, porquanto não tinham noção de toda a ruindade que disseminaram.
O corolário do axioma formulado pelo filosófico chofer de transporte público era que, quanto mais idoso fosse o indivíduo, mais provavelmente tratava-se de um verme repulsivo.
E se, por ventura, não fossem moralmente desprezíveis, teriam que ser o oposto, ou seja, evoluídos espiritualmente a ponto de não demandar gentilezas. Isto inferia que, em hipótese alguma, eu teria de oferecer a minha poltrona a um ancião.
Mas eu não concordava com o argumento dele. Aqueles pontinhos de interrogação curvadinhos, que mais pareciam sacolinhas de supermercado correndo o risco de serem arrastadas pelo vento, apenas podiam ter propagado a bondade durante os anos em que permaneceram na superfície desta bola de terra.
Ao longo do desenvolvimento da minha compleição física, eu não tive nenhum motivo para supor que as mazelas constituíssem tão somente um lugar alheio.
Muito pelo contrário, pois os desapontamentos estiveram presentes no interior do meu próprio lar e advindos dos meus progenitores, inclusive.
Entretanto, o debruçamento sobre a arte de traçar versos foi uma ferramenta útil para aliviar as lágrimas. E quiçá tenha reforçado a minha boa vontade em relação aos mais antigos.
No meio escolar, os hábitos demonstrados pelos educadores também não foram dos mais bonitos.
Foram diversas as manifestações dos lecionadores – ocasionalmente de forma verbal explícita – que alardeavam serem as remunerações pecuniárias pelo serviço prestado a única razão de comparecimento desgostoso àquela jaula.
Exceções sempre há. O professor de matemática era da espécie que carregava uma atmosfera condutora de ares provenientes de umas duas ou três décadas anteriores ao meu nascimento, realce do arquétipo que marcha com uma régua na mão e calça galochas em dias chuvosos.
E, por mais que nos empenhemos, não conseguimos imaginá-lo frequentando um toalete.
Todavia, um adolescente contestador não encontra dificuldade em forjar situações provocativas com o fim de descobrir a "verdadeira verdade".
Bastam poucos desafios pirracentos para que a máscara do protótipo de tradicionalista resvale e desça ao solo.
Um par de réplicas antagônicas às explanações didáticas foi suficiente para assistir a um espetáculo elegante do nobre pedagogo com direito a apagador de lousa estourando vidraça e gritos afeminados histéricos.
Mas ainda restava uma esperança: o culto titular da cadeira de língua portuguesa, um respeitável senhor septuagenário a quem os alunos atribuíram a alcunha de "mestre dos magos".
Ele usufruía de um comportamento enigmático, tamanha era a sua perícia em articular narrativas acerca de costumes arcaicos memoráveis para nortear as novas gerações.
Tantas pronúncias belas expressou o catedrático que – não sei se ele notou – eu o elevei à categoria de "meu guru".
Eu necessitava mesmo de um mentor. Carecia deparar-me exteriormente com o modelo que eu não tinha em casa.
Por isto, optei crer que ele só não lia as minhas redações extras por absoluta falta de tempo e para evitar sugestionar-me e comprometer o meu estilo literário.
E ele ainda esmerava-se no cuidado para não me deixar chateado. Fingia que lera os meus textos e fazia comentários genéricos, afirmando que gostou do que eu escrevi e que eu estava melhorando, mesmo quando inseri uma receita de bolo na folha pautada.
E que importância isto tem? Tudo era por uma causa justa: não me entristecer e incentivar-me. Pelo menos, esta era a minha fé.
E tão ferrenha era a minha convicção em sua índole superior que, uma vez, estando eu na fila do banco, ao vê-lo humilhar grosseiramente a mocinha do caixa, virei o rosto e aumentei o volume do meu walkman para preservar a minha certeza.
Porém, apesar das maneiras eticamente relapsas mostradas pelas pessoas maduras das quais eu tentei absorver elementos edificadores, o fato significativo era que o maior dos cofres de luz instrutiva estava na iminência de ser aberto.
Estávamos na estrada e, dentro de alguns minutos, eu me colocaria diante do homem que tinha cento e vinte anos.
Como não me emocionar? Quando eu nasci, ele já contava mais de um centenário completo!
Na entrada do abrigo, eu já me decepcionei...
O ambiente não era dos mais felizes. Meu amigo sacou a câmera fotográfica – daquelas cujo filme precisava ser levado a uma ótica para ser revelado – e desejou retratar os velhinhos.
Uma senhora foi logo dizendo que não queria aparecer na foto porque não prestava mais para nada.
A ressalva ficou por conta de outra velhinha que não parava de rir. Ela achou um barato o brinco na orelha do meu amigo.
E todos nós rachamos o bico quando ela o questionou sobre suas preferências íntimas:
– Você é bicha, garoto?
Minha ansiedade foi, finalmente, satisfeita. Numa cadeira de rodas disposta num canto escuro da sala, estava o homem que, segundo a matéria do jornal, havia conversado pessoalmente com a princesa Isabel.
Eu esperava vê-lo tomando um solzinho naquele dia em que não havia nenhuma nuvem num maravilhoso céu azul de maio, mas a minha empolgação era imensa e não dei muito valor à circunstância inusitada.
Começamos o diálogo com a arca de vivência em carne e osso.
Meu amigo, a namorada dele e eu cumprimentamos o idoso.
Mais do que depressa, eu me adiantei e fui perguntando:
– O que o senhor tem pra ensinar pra gente?
Olhando para o chão, o homem mais velho do mundo respondeu:
– Nada.
Mingau Ácido (Marcelo Garbine)
Essa também é legal!
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