Maçons e estranhos – Um hábito e três gerações
- I -
O templo maldito
Samuel Smith vestiu seu sobretudo e beijou sua esposa. Ao ajeitar seu chapéu e encostar vagarosamente a porta da cozinha, entreviu, pelo breve vão que ainda restava, seus três pequenos sorrindo à mesa. O mais encantado era Patrick, de apenas quatro anos, afoito com o Phantom System que o Papai Noel trar-lhe-ia naquela noite.
Ao parar sua pick-up Cameo 1958 num semáforo da Temple Street, Samuel observou o Templo Maçônico de Detroit e sentiu-se arrebatado por um lampejo reflexivo: talvez existissem mais influências de seu genitor em sua vida do que sua pretensa personalidade forte fora capaz de edificar.
Até a caminhonete antiquada de três décadas, o paletó grosso e o vínculo maçônico foram adotados por ele como estilos copiados do velho Jack.
Atendendo ao clamor de Libby, que fora enfática ao deixar claro que não se prenderia às panelas na véspera do festejo, estacionou próximo do Renaissance Center e foi ao Opus One para comprar caranguejos grelhados e satisfazer o desejo de sua mulher.
Ela só queria comida pronta. Ele optou pelos caranguejos em razão do arraigado hábito de infância: desde criança, em sua casa, sempre preparavam este fruto do mar para as refeições dos solstícios de inverno.
E, no supracitado restaurante, pôde adquirir brownies e cookies para a sobremesa, considerando saudar a mesma tradição.
Libby não era apreciadora desta cultura, porém tolerava o costume de seu cônjuge, embora esbravejasse com ele por sua teimosia em referir-se à data natalina como "o solstício" ou "o dia do renascimento".
– Você não é o seu pai! – Ela assim o repreendia.
- II -
Pavor no toalete
Seus anos impúberes em Troy fizeram-se sublinhados por sobressaltos que causaram marcas de pânico no menino Sammy, como era chamado. Mais tarde, com o advento da mocidade, o medo de Samuel fora camuflado com a incorporação dos ícones exóticos em sua rotina.
Acometida pelo mal de Parkinson, sua mãe, Violet, vivia numa cadeira de rodas. Há tempos abandonada à própria sorte, não era zelada por seu esposo Jack, que empregava os seus dias em prol da sociedade secreta.
Devido à rigidez paterna, Sammy era impedido de sair para a rua e entreter-se com as outras crianças. Passava, então, os seus dias vagando na casa escassamente iluminada.
O fato de possuir um irmão dois anos mais novo não aliviava a solidão, pois o caçula Joshua era catatônico e somente arquitetava um leve erguimento de sobrancelha quando percebia o seu nome sendo proferido.
As acácias cultivadas em frascos, organizados nos cantos da sala de estar, e as colunas que sustentavam o forro constituíam somente dois dos símbolos da ordem universal que ornavam o lugar. Marchando a esmo entre tais alegorias, Sammy consumia suas horas de inocência. E o seu perambular era musicado pela sonoplastia desenvolvida por Joshua, que batia o malhete do pai na tábua do gabinete de trabalho, fazendo o ruído ecoar pela residência, a cada passo que Sammy imprimia no piso frio dos cômodos.
Aturdido, Sammy gritava o nome da mãe. Violet, ao seu melhor modo, vinha ao socorro do filho.
Ao ouvir os rangidos das rodas de sua cadeira cada vez mais altos, Sammy, ao invés de tranquilizar-se, acirrava o seu desespero.
Quando, nas arestas daquela vivenda tenebrosa, ressonava a meia dúzia de gorjeios mecânicos do relógio cuco, indicando a décima oitava hora, Sammy encolhia-se em posição fetal ao pé do sofá empoeirado, aguardando os inevitáveis chiados do assento roliço da genitora, acompanhados de sua pronúncia estridente:
– Sammy! Caminha!
E o garotinho, batendo a arcada dentária, suspendia-se do solo, apoiando os joelhinhos no taco, e mancava vergado até o seu colchão.
Vislumbrando o luar pela janela, o jovem encharcava-se em fluidos de choro, envolto por alucinações noturnas, que, se já são comuns em sua faixa etária, nele eram acentuadas em virtude da atmosfera sinistra do local em que morava.
Jack, motivado pelo incômodo e não pelo cuidado com o filho, via-se obrigado a deslocar-se do conforto do leito para averiguar o quarto de Sammy. Não adiantava insistir que o monstro do lavabo era fruto de sua imaginação infantil porque Sammy não se convencia e apenas voltava a adormecer caso o pai buscasse seu revólver e disparasse um tiro na parede do banheiro.
– Pronto, meu filho, o papai já matou o monstro.
E o garoto dormia em paz...
Havia noites em que a escuridão era ainda mais salientada pela ausência da lua e das estrelas. Nestas trevas, a agonia de Sammy enfatizava-se e, por consequência, elevava o estorvo do tosco Jack, que sofria maiores interrupções de seus descansos notívagos. E, naquela ocasião, sua paciência atingiu as raias do aceitável. Jack achou prudente não surrar o filho.
Para tanto, fez o que qualquer pai ponderado faria: colocou sua arma na cabeceira de Sammy e instruiu-o: "Se o monstro aparecer, vá ao toalete e dê um tiro nele". Sendo o bicho fictício, que mal faria uma bala lançada contra os azulejos?
Resolvido... O rude Jack, enfim, repousaria quietamente... Aliás, daquela vez, ele experimentava um duplo deleite pessoal: fizera duas boas ações num único dia! Além de solucionar o problema do terror do filho, também engraxou as engrenagens da cadeira de rodas de Violet. Antes de retornar ao sono, o homem encarou-se no espelho e enalteceu-se pensando: "Eita cabra bom que eu sou!".
Violet, como de praxe, atenuava suas insônias com giros pelos aposentos da casa. Sammy, desperto, aguçava sua audição, na espreita, concentrado no menor sinal de aparição da fera das sombras. A debilitada mulher não mais alardeava seus rastros com os roncos de seu utensílio locomotor, que fora lubrificado, todavia nem por isto passava despercebida, tendo em vista o princípio de sua crise de asma. Uma novidade a mais para a sua coleção de contratempos na saúde.
Sammy, que não sabia do recém-chegado desarranjo nas vias aéreas de sua mãe, não poderia suspeitar que aquela respiração alta e desconexa que tomava conta do espaço fosse oriunda do aparelho pulmonar materno, muito menos por não escutar os corriqueiros estrondos que revelavam seu avizinhamento.
Trêmulas, suas mãozinhas apalparam a mobília, acima de sua cabeça, procurando a Kimber calibre 45. E o vulto enigmático fungava, progressivamente, mais perto. As palmas abertas de Sammy erravam o objeto almejado e faziam vibrar onomatopeicamente a madeira. Seus lábios bruxuleantes eram o maior sinal de sua aflição.
Após algumas dezenas de tapas no móvel, finalmente, em vez do plano, Sammy cerrou os dedos no ferro cilíndrico gelado. Suspirou com gosto.
O imaginário desconhecido, agora, não mais o atormentava com o castigo da ansiedade. Ele estava munido com sua proteção de fogo.
Os urros bufados do presumido malvado indicaram que a besta adentrara seu habitat: o sanitário. Resguardado com sua defesa de metal, pé ante pé, Sammy já estava no centro do dormitório.
Aquele não costumava ser o lavabo frequentado por Violet, que utilizava a suíte do casal. Contudo, a sua dificuldade de movimentação e os waffles com ovos e bacon apimentado do lanche vespertino influenciaram em sua alternativa irregular.
A doença de Parkinson tornava-a inábil para o desempenho do simples encargo de trancar uma fechadura ou mesmo manipular uma maçaneta, o que a levava a manter a porta aberta. Nunca a hipotética fantasia do rapazote foi tão real: o bicho-papão existia e estava depurando-se em sua privada.
Joshua não podia escolher hora da madrugada mais oportuna para golpear o malhete. A escrivaninha, comumente adaptada como tambor, conferia trilha à peripécia do mancebinho destemido.
A outrora figura mitológica, agora audível e plausivelmente palpável, gemia com alívio pela submersão da matéria fétida na água. O mergulho da escória, regozijante para a ocupante do vaso, funcionava como orientação sonora e aromática para o aventureiro mirim. "O monstro que faz Ploft! Ploft! Ploft! vai morrer!" – cogitou o fedelho armado.
- III -
A visita indiscreta de um homem errado
Samuel regressou para junto de sua família com os mantimentos para a ceia. Peter, o filho do meio, largou as bolas que estavam sendo penduradas na árvore de natal, correu e abraçou o pai.
– Papai, o vovô veio passar o natal com a gente!
Samuel engoliu seco e abriu um sorriso amarelo. Levantando a mão lentamente, acenou para o ancião sisudo de braços cruzados, esparramado em seus estofados.
– Olá, Jack... Seja bem-vindo...
Na mesa de jantar, os caranguejos eram degustados pela família. Não fosse a agitação das crianças, apenas o tilintar dos talheres nas louças seriam ouvidos.
Na tentativa de quebrar o clima tenso, Libby ligou a TV. O ABC Word News Tonight reprisava o último discurso de Ronald Reagan, que encerrava, naquele ano, sua estada na Casa Branca.
– Olha só, Samuel! O Reagan! – Provocou Jack, em tom irônico. – Sua mãe era fã número um dele. Infelizmente, ela não chegou a vê-lo no mundo da política, mas o admirava como ator de Hollywood. "Kings Row – Em cada coração, um pecado" era o filme no qual Reagan atuou que sua mãe mais amava. Foi assistindo a este filme, em 1942, que demos o nosso primeiro beijo. Sabia?
Afônico, Samuel ameaçou dizer algo enquanto espetava a toalha, ao desacertar o caranguejo seguinte. Conseguiu unicamente gaguejar algumas palavras incompreensíveis.
Libby, aparentemente, não possuía subsídios para desvendar o embaraço do marido. Preocupada, interveio para acudi-lo ao passo que também agradaria o sogro:
– É um belo clássico, senhor Smith. Para mim, que simpatizo com obras cinematográficas antigas, foi uma ótima oportunidade para exaltar-me com a fascinante paixão entre Cassandra e Parris, mesmo com a violenta objeção do pai da moça.
– Sim. Pena que tudo terminou em tragédia. – lamentou Jack – Cassandra foi morta pelo próprio pai. Um assassinato em família...
Pálido, Samuel apenas levava o garfo à boca, numa dinâmica automática, sem mexer a cabeça, exclusivamente virando os olhos para certificar-se de que as crianças continuavam divertindo-se entre si, sem prestar atenção na conversa dos adultos.
– Samuel fala pouco de Violet, senhor Smith, talvez pelo fato de vocês haverem divorciado-se quando ele era muito pequeno e ela ter ido morar com a tia, em Lansing.
Jack arregalou excessivamente as pálpebras, olhando para o filho, e esboçou uma risada sarcástica:
– Sério, Samuel? Sua mãe mudou-se para Lansing?
Samuel, engasgando com o crustáceo, conduziu o guardanapo ao rosto para impedir que o alimento fosse expelido. Com a testa enrugada e os ombros retraídos, fechava os olhos que transbordavam lágrimas de asfixia.
- IV -
A dama oculta e o terceiro tiro
No dia em que Sammy completou seis anos de idade, Jack acordou-o pela manhã com uma enunciação:
– Meu primogênito, hoje se inicia um ciclo da sua vida que se findará daqui a sessenta anos, quando você completar sessenta e seis. É hora de você conhecer os mistérios reservados a uma elite extranatural.
Na plenitude de sua ingenuidade, testemunhou o rito em que seu pai passou ao grau de Cavaleiro do Real Arco, sem entender por que homens de meia idade enfeitavam-se com capas e capuzes negros e empunhavam espadas uns para os outros. O nível de compreensão de Sammy tendia a zero, porém o pesadelo daquela noite estava garantido.
A partir daquele instante, segundo a interpretação de Jack, seu filho transformara-se num homem maduro e deveria responsabilizar-se por si. Devaneios tolos da criatividade infantil seriam proibidos. Foi este o motivo que levou o pai, ao cair do crepúsculo, a entregar a pistola ao menino, imputando-lhe uma espécie de licença para dizimar o anjo maligno que o martirizava.
E lá estava Sammy, no breu do corredor que ligava o quarto ao banheiro, crendo, pois, que era um hominho empunhando o cano mortífero. A cada sopro asmático golfado pelo cão do inferno, os dedos endurecidos de Sammy latejavam entrelaçados no ferro frígido. Os pulmões do belzebu ventavam e Sammy dava mais um passo adiante. Um respiro por uma pernada... Uma baforada, um movimento...
Cinco paredes à frente, Jack é tirado da calmaria da sonolência pelos três estalos graves retumbando nos múltiplos vácuos que compunham o casarão do século XIX em que habitava.
Em menos de dois minutos, estava o pai detrás de Sammy, sentenciando:
– Seu imbecil! Você matou sua mãe!
- V -
A tortura do silêncio
No reformatório, em Charlotte, a vida de Samuel foi marcada pelas sensações de culpa e crises de arrependimento. Não recebia visitantes e nunca mais vira o pai. Nada soube acerca do destino do irmão. O mais perturbador era não ter ido ao enterro da mãe. Entretanto, tinha excelentes professores e estudou muito.
Aos dezenove, livre, finalmente, ensaiou fixar domicílio em algumas cidades do Michigan, sem lograr êxito. A itinerância pelo estado foi uma constante na fase jovial de sua existência. Este desvio impeliu-o a uma essência solitária. Libby Moore surgiu para ele quando já contava vinte e três anos. Casou-se dois anos depois e foi pai aos vinte e sete. Como executivo médio da General Motors, em Detroit, angariou soma monetária suficiente para prover o lar e os três filhos.
Acreditando em sua própria perversidade, os berros paternos nunca saíram de suas recordações. Sua psique fragilizada deduziu que o pai esteve sempre certo, fazendo-o contrair as práticas mais nefastas de Jack, como a obsessão pela maçonaria, por exemplo.
Libby, apaixonada pelo jovem excêntrico, relevou suas estranhezas, aprendeu a conviver com suas maneiras bizarras e demonstrou confiança em sua narrativa sobre o paradeiro de seus pais.
Em sua intimidade conjugal, ela respeitou o silêncio do marido em relação ao passado. Fazia parte da harmonia e da cumplicidade da comunhão este tipo de condescendência, conquanto isto não signifique que não tenha demandado rastrear a verdade. Fingia não saber para não cutucar a ferida de Samuel. Mostrava-se crédula em todas as versões utópicas por ele descritas.
Calculando ser casado com uma mulher resignada, jamais Samuel poderia supor que Libby tinha com ela guardada a arma do crime.
Libby era filha do perito que tutelou o revólver que matou a senhora Violet. Concluído o inquérito policial e o julgamento, por negligência, a pistola fora esquecida na gaveta de baixo do arquivo do escritório do senhor Moore, falecido ainda durante a infância da menina.
A moça chegou a enveredar pela carreira de detetive, no decurso do noivado com Samuel, no entanto desistiu da profissão em nome da prioridade de ser uma exímia mãe de família e dona de casa. Os fichários do pai foram um prato cheio para Libby inteirar-se dos meandros da esfera criminal. E foi lá que decifrou a nuvem que eclipsava a biografia pregressa do homem a quem elegeu para passar a vida.
No porão, sem o conhecimento de Samuel, preservou todos os documentos processuais, inclusive a prova material do delito com as impressões digitais do pequeno Sammy. Era a sua forma de ter contato com o fragmento perdido da existência do amado esposo. Omitido por ele e salvaguardado por ela.
Antes do nascimento de Paul, seu primeiro filho, Samuel pôde esbaldar-se na fartura de todo um salário executivo totalmente com Libby. Viajaram por vários pontos turísticos de seu país. Exploram Orlando, Las Vegas e Havaí, dentre outros.
Foi na Broadway que – contemplando uma peça de teatro clássica do Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda – os credos de Samuel foram brutalmente bombardeados com um ataque revisional em seus pilares dogmáticos. Libby, compenetrada pelo magnetismo sedutor do mito da Excalibur, permaneceu alheia ao pasmo do esposo. Samuel sentiu um nó no cérebro quando os atores, togados e encapuzados, circundaram a pedra e uniram suas espadas. Mormente, foram os trejeitos femininos de um dos soldados do rei que o fizeram ter uma epifania.
No dia do seu sexto aniversário, na Grande Loja Maçônica, apesar de todos os integrantes estarem trajados com roupas que cobriam todo o corpo, rememorou que, naquela feita, a mobilidade de um deles era bem mais delicada e sua massa corpórea, miúda. O que sua autodefesa psicológica apagara de suas lembranças, agora ressuscitava. Em seguida à cerimônia de passagem de grau de seu pai, vira-o, disfarçadamente, segurando a mão do homem franzino.
- VI -
A mulher que sabia demais
Posteriormente à tragédia que assolou sua infância, tudo se sucedeu muito rápido. Sammy não teve tempo hábil para tomar ciência da repercussão do ocorrido e seus desdobramentos, pois logo se viu internado na casa de custódia, em Charlotte.
Nos meses que precederam a entrada de Libby em sua vida, quando ainda vivia seus dias de homem isolado, sondou a respeito do desfecho da fatalidade daquele mês de novembro de 1952.
Passeando por Maple Road, bairro de Troy em que morava na infância, conversou com o atual proprietário da casa vizinha à que residiu. Há apenas três anos, Christopher comprara o imóvel do filho de Emily Sullivan, que era, com efeito, o único laço de amizade de sua mãe. Ele contou que, por ventura, soube ter Emily sido confinada num asilo de Hillsdale.
Visitada por Samuel em seu retiro, ainda lúcida, a senhora Sullivan externou confissões que o flagelaram a ponto de desestimulá-lo a prosseguir com as investigações. Bastou a Samuel saber que um dos maiores incentivos que atava Jack à maçonaria era um flerte romântico. O parrudo Jack também tinha o seu lado sonhador.
– Mulheres não frequentam a maçonaria, senhora Sullivan.
Emily, a fuxiquenta da rua, carecia de poucos incitamentos para desembuchar as notícias mais cabulosas que entretiveram a população de Maple Road naquela década em que a televisão ainda era artigo de luxo no mercado. Uma lágrima de crocodilo escoou pela face esquerda da idosa ao ser dada tão saborosa chance de picar com apetite o seu tímido interlocutor:
– Pois então, meu pequeno Sammy... Em certos ambientes, somos desnecessárias...
- VII -
A trama macabra e a ceia diabólica
Parcos andamentos do ponteiro marcador de minutos distavam o momento presenciado da zero hora. Na mesa, Libby compadecia-se com o constrangimento amargado por Samuel. Em sua concepção de mulher companheira, Jack ultrapassava todos os limites da crueldade.
As íris oculares de Jack ainda derramavam deboche em Samuel quando Libby retirou-se do recinto, levando os filhos para o quarto. Jack somente foi despertado de seu ódio ao avistar Libby voltando com a Kimber calibre 45 empunhada.
– Eu já vi armas antes, senhora Moore. Elas não me assustam.
– Eu sei, senhor Smith. Só não tem coragem de usá-la. Prefere ceder o serviço sujo para outro. E ainda é cínico o suficiente para repelir o próprio filho, que fez o que o senhor aspirava, mas não era valente o bastante para tal.
– A senhora brinca com a minha tristeza, senhora Moore. Foi depressivo perder a mulher que eu mais amei.
– Talvez Anthony Hall tenha compensado a sua angústia com muitas felicidades. O pobre Sammy foi o bode expiatório perfeito para que o senhor não precisasse carregar culpa e nem admitir para si o quanto estava disposto para desfrutar do seu paladar pela sodomia.
Os três estampidos do revólver disparado por Libby misturaram-se ao barulho dos rojões que estouravam nos arredores. Enquanto Samuel checava o pulso do pai, Libby corria para entregar aos meninos, no quarto de dormir, os presentes que o Papai Noel havia deixado sob a árvore. Patrick ganhou seu Phantom System.
Mingau Ácido (Marcelo Garbine)
O templo maldito
Samuel Smith vestiu seu sobretudo e beijou sua esposa. Ao ajeitar seu chapéu e encostar vagarosamente a porta da cozinha, entreviu, pelo breve vão que ainda restava, seus três pequenos sorrindo à mesa. O mais encantado era Patrick, de apenas quatro anos, afoito com o Phantom System que o Papai Noel trar-lhe-ia naquela noite.
Ao parar sua pick-up Cameo 1958 num semáforo da Temple Street, Samuel observou o Templo Maçônico de Detroit e sentiu-se arrebatado por um lampejo reflexivo: talvez existissem mais influências de seu genitor em sua vida do que sua pretensa personalidade forte fora capaz de edificar.
Até a caminhonete antiquada de três décadas, o paletó grosso e o vínculo maçônico foram adotados por ele como estilos copiados do velho Jack.
Atendendo ao clamor de Libby, que fora enfática ao deixar claro que não se prenderia às panelas na véspera do festejo, estacionou próximo do Renaissance Center e foi ao Opus One para comprar caranguejos grelhados e satisfazer o desejo de sua mulher.
Ela só queria comida pronta. Ele optou pelos caranguejos em razão do arraigado hábito de infância: desde criança, em sua casa, sempre preparavam este fruto do mar para as refeições dos solstícios de inverno.
E, no supracitado restaurante, pôde adquirir brownies e cookies para a sobremesa, considerando saudar a mesma tradição.
Libby não era apreciadora desta cultura, porém tolerava o costume de seu cônjuge, embora esbravejasse com ele por sua teimosia em referir-se à data natalina como "o solstício" ou "o dia do renascimento".
– Você não é o seu pai! – Ela assim o repreendia.
- II -
Pavor no toalete
Seus anos impúberes em Troy fizeram-se sublinhados por sobressaltos que causaram marcas de pânico no menino Sammy, como era chamado. Mais tarde, com o advento da mocidade, o medo de Samuel fora camuflado com a incorporação dos ícones exóticos em sua rotina.
Acometida pelo mal de Parkinson, sua mãe, Violet, vivia numa cadeira de rodas. Há tempos abandonada à própria sorte, não era zelada por seu esposo Jack, que empregava os seus dias em prol da sociedade secreta.
Devido à rigidez paterna, Sammy era impedido de sair para a rua e entreter-se com as outras crianças. Passava, então, os seus dias vagando na casa escassamente iluminada.
O fato de possuir um irmão dois anos mais novo não aliviava a solidão, pois o caçula Joshua era catatônico e somente arquitetava um leve erguimento de sobrancelha quando percebia o seu nome sendo proferido.
As acácias cultivadas em frascos, organizados nos cantos da sala de estar, e as colunas que sustentavam o forro constituíam somente dois dos símbolos da ordem universal que ornavam o lugar. Marchando a esmo entre tais alegorias, Sammy consumia suas horas de inocência. E o seu perambular era musicado pela sonoplastia desenvolvida por Joshua, que batia o malhete do pai na tábua do gabinete de trabalho, fazendo o ruído ecoar pela residência, a cada passo que Sammy imprimia no piso frio dos cômodos.
Aturdido, Sammy gritava o nome da mãe. Violet, ao seu melhor modo, vinha ao socorro do filho.
Ao ouvir os rangidos das rodas de sua cadeira cada vez mais altos, Sammy, ao invés de tranquilizar-se, acirrava o seu desespero.
Quando, nas arestas daquela vivenda tenebrosa, ressonava a meia dúzia de gorjeios mecânicos do relógio cuco, indicando a décima oitava hora, Sammy encolhia-se em posição fetal ao pé do sofá empoeirado, aguardando os inevitáveis chiados do assento roliço da genitora, acompanhados de sua pronúncia estridente:
– Sammy! Caminha!
E o garotinho, batendo a arcada dentária, suspendia-se do solo, apoiando os joelhinhos no taco, e mancava vergado até o seu colchão.
Vislumbrando o luar pela janela, o jovem encharcava-se em fluidos de choro, envolto por alucinações noturnas, que, se já são comuns em sua faixa etária, nele eram acentuadas em virtude da atmosfera sinistra do local em que morava.
Jack, motivado pelo incômodo e não pelo cuidado com o filho, via-se obrigado a deslocar-se do conforto do leito para averiguar o quarto de Sammy. Não adiantava insistir que o monstro do lavabo era fruto de sua imaginação infantil porque Sammy não se convencia e apenas voltava a adormecer caso o pai buscasse seu revólver e disparasse um tiro na parede do banheiro.
– Pronto, meu filho, o papai já matou o monstro.
E o garoto dormia em paz...
Havia noites em que a escuridão era ainda mais salientada pela ausência da lua e das estrelas. Nestas trevas, a agonia de Sammy enfatizava-se e, por consequência, elevava o estorvo do tosco Jack, que sofria maiores interrupções de seus descansos notívagos. E, naquela ocasião, sua paciência atingiu as raias do aceitável. Jack achou prudente não surrar o filho.
Para tanto, fez o que qualquer pai ponderado faria: colocou sua arma na cabeceira de Sammy e instruiu-o: "Se o monstro aparecer, vá ao toalete e dê um tiro nele". Sendo o bicho fictício, que mal faria uma bala lançada contra os azulejos?
Resolvido... O rude Jack, enfim, repousaria quietamente... Aliás, daquela vez, ele experimentava um duplo deleite pessoal: fizera duas boas ações num único dia! Além de solucionar o problema do terror do filho, também engraxou as engrenagens da cadeira de rodas de Violet. Antes de retornar ao sono, o homem encarou-se no espelho e enalteceu-se pensando: "Eita cabra bom que eu sou!".
Violet, como de praxe, atenuava suas insônias com giros pelos aposentos da casa. Sammy, desperto, aguçava sua audição, na espreita, concentrado no menor sinal de aparição da fera das sombras. A debilitada mulher não mais alardeava seus rastros com os roncos de seu utensílio locomotor, que fora lubrificado, todavia nem por isto passava despercebida, tendo em vista o princípio de sua crise de asma. Uma novidade a mais para a sua coleção de contratempos na saúde.
Sammy, que não sabia do recém-chegado desarranjo nas vias aéreas de sua mãe, não poderia suspeitar que aquela respiração alta e desconexa que tomava conta do espaço fosse oriunda do aparelho pulmonar materno, muito menos por não escutar os corriqueiros estrondos que revelavam seu avizinhamento.
Trêmulas, suas mãozinhas apalparam a mobília, acima de sua cabeça, procurando a Kimber calibre 45. E o vulto enigmático fungava, progressivamente, mais perto. As palmas abertas de Sammy erravam o objeto almejado e faziam vibrar onomatopeicamente a madeira. Seus lábios bruxuleantes eram o maior sinal de sua aflição.
Após algumas dezenas de tapas no móvel, finalmente, em vez do plano, Sammy cerrou os dedos no ferro cilíndrico gelado. Suspirou com gosto.
O imaginário desconhecido, agora, não mais o atormentava com o castigo da ansiedade. Ele estava munido com sua proteção de fogo.
Os urros bufados do presumido malvado indicaram que a besta adentrara seu habitat: o sanitário. Resguardado com sua defesa de metal, pé ante pé, Sammy já estava no centro do dormitório.
Aquele não costumava ser o lavabo frequentado por Violet, que utilizava a suíte do casal. Contudo, a sua dificuldade de movimentação e os waffles com ovos e bacon apimentado do lanche vespertino influenciaram em sua alternativa irregular.
A doença de Parkinson tornava-a inábil para o desempenho do simples encargo de trancar uma fechadura ou mesmo manipular uma maçaneta, o que a levava a manter a porta aberta. Nunca a hipotética fantasia do rapazote foi tão real: o bicho-papão existia e estava depurando-se em sua privada.
Joshua não podia escolher hora da madrugada mais oportuna para golpear o malhete. A escrivaninha, comumente adaptada como tambor, conferia trilha à peripécia do mancebinho destemido.
A outrora figura mitológica, agora audível e plausivelmente palpável, gemia com alívio pela submersão da matéria fétida na água. O mergulho da escória, regozijante para a ocupante do vaso, funcionava como orientação sonora e aromática para o aventureiro mirim. "O monstro que faz Ploft! Ploft! Ploft! vai morrer!" – cogitou o fedelho armado.
- III -
A visita indiscreta de um homem errado
Samuel regressou para junto de sua família com os mantimentos para a ceia. Peter, o filho do meio, largou as bolas que estavam sendo penduradas na árvore de natal, correu e abraçou o pai.
– Papai, o vovô veio passar o natal com a gente!
Samuel engoliu seco e abriu um sorriso amarelo. Levantando a mão lentamente, acenou para o ancião sisudo de braços cruzados, esparramado em seus estofados.
– Olá, Jack... Seja bem-vindo...
Na mesa de jantar, os caranguejos eram degustados pela família. Não fosse a agitação das crianças, apenas o tilintar dos talheres nas louças seriam ouvidos.
Na tentativa de quebrar o clima tenso, Libby ligou a TV. O ABC Word News Tonight reprisava o último discurso de Ronald Reagan, que encerrava, naquele ano, sua estada na Casa Branca.
– Olha só, Samuel! O Reagan! – Provocou Jack, em tom irônico. – Sua mãe era fã número um dele. Infelizmente, ela não chegou a vê-lo no mundo da política, mas o admirava como ator de Hollywood. "Kings Row – Em cada coração, um pecado" era o filme no qual Reagan atuou que sua mãe mais amava. Foi assistindo a este filme, em 1942, que demos o nosso primeiro beijo. Sabia?
Afônico, Samuel ameaçou dizer algo enquanto espetava a toalha, ao desacertar o caranguejo seguinte. Conseguiu unicamente gaguejar algumas palavras incompreensíveis.
Libby, aparentemente, não possuía subsídios para desvendar o embaraço do marido. Preocupada, interveio para acudi-lo ao passo que também agradaria o sogro:
– É um belo clássico, senhor Smith. Para mim, que simpatizo com obras cinematográficas antigas, foi uma ótima oportunidade para exaltar-me com a fascinante paixão entre Cassandra e Parris, mesmo com a violenta objeção do pai da moça.
– Sim. Pena que tudo terminou em tragédia. – lamentou Jack – Cassandra foi morta pelo próprio pai. Um assassinato em família...
Pálido, Samuel apenas levava o garfo à boca, numa dinâmica automática, sem mexer a cabeça, exclusivamente virando os olhos para certificar-se de que as crianças continuavam divertindo-se entre si, sem prestar atenção na conversa dos adultos.
– Samuel fala pouco de Violet, senhor Smith, talvez pelo fato de vocês haverem divorciado-se quando ele era muito pequeno e ela ter ido morar com a tia, em Lansing.
Jack arregalou excessivamente as pálpebras, olhando para o filho, e esboçou uma risada sarcástica:
– Sério, Samuel? Sua mãe mudou-se para Lansing?
Samuel, engasgando com o crustáceo, conduziu o guardanapo ao rosto para impedir que o alimento fosse expelido. Com a testa enrugada e os ombros retraídos, fechava os olhos que transbordavam lágrimas de asfixia.
- IV -
A dama oculta e o terceiro tiro
No dia em que Sammy completou seis anos de idade, Jack acordou-o pela manhã com uma enunciação:
– Meu primogênito, hoje se inicia um ciclo da sua vida que se findará daqui a sessenta anos, quando você completar sessenta e seis. É hora de você conhecer os mistérios reservados a uma elite extranatural.
Na plenitude de sua ingenuidade, testemunhou o rito em que seu pai passou ao grau de Cavaleiro do Real Arco, sem entender por que homens de meia idade enfeitavam-se com capas e capuzes negros e empunhavam espadas uns para os outros. O nível de compreensão de Sammy tendia a zero, porém o pesadelo daquela noite estava garantido.
A partir daquele instante, segundo a interpretação de Jack, seu filho transformara-se num homem maduro e deveria responsabilizar-se por si. Devaneios tolos da criatividade infantil seriam proibidos. Foi este o motivo que levou o pai, ao cair do crepúsculo, a entregar a pistola ao menino, imputando-lhe uma espécie de licença para dizimar o anjo maligno que o martirizava.
E lá estava Sammy, no breu do corredor que ligava o quarto ao banheiro, crendo, pois, que era um hominho empunhando o cano mortífero. A cada sopro asmático golfado pelo cão do inferno, os dedos endurecidos de Sammy latejavam entrelaçados no ferro frígido. Os pulmões do belzebu ventavam e Sammy dava mais um passo adiante. Um respiro por uma pernada... Uma baforada, um movimento...
Cinco paredes à frente, Jack é tirado da calmaria da sonolência pelos três estalos graves retumbando nos múltiplos vácuos que compunham o casarão do século XIX em que habitava.
Em menos de dois minutos, estava o pai detrás de Sammy, sentenciando:
– Seu imbecil! Você matou sua mãe!
- V -
A tortura do silêncio
No reformatório, em Charlotte, a vida de Samuel foi marcada pelas sensações de culpa e crises de arrependimento. Não recebia visitantes e nunca mais vira o pai. Nada soube acerca do destino do irmão. O mais perturbador era não ter ido ao enterro da mãe. Entretanto, tinha excelentes professores e estudou muito.
Aos dezenove, livre, finalmente, ensaiou fixar domicílio em algumas cidades do Michigan, sem lograr êxito. A itinerância pelo estado foi uma constante na fase jovial de sua existência. Este desvio impeliu-o a uma essência solitária. Libby Moore surgiu para ele quando já contava vinte e três anos. Casou-se dois anos depois e foi pai aos vinte e sete. Como executivo médio da General Motors, em Detroit, angariou soma monetária suficiente para prover o lar e os três filhos.
Acreditando em sua própria perversidade, os berros paternos nunca saíram de suas recordações. Sua psique fragilizada deduziu que o pai esteve sempre certo, fazendo-o contrair as práticas mais nefastas de Jack, como a obsessão pela maçonaria, por exemplo.
Libby, apaixonada pelo jovem excêntrico, relevou suas estranhezas, aprendeu a conviver com suas maneiras bizarras e demonstrou confiança em sua narrativa sobre o paradeiro de seus pais.
Em sua intimidade conjugal, ela respeitou o silêncio do marido em relação ao passado. Fazia parte da harmonia e da cumplicidade da comunhão este tipo de condescendência, conquanto isto não signifique que não tenha demandado rastrear a verdade. Fingia não saber para não cutucar a ferida de Samuel. Mostrava-se crédula em todas as versões utópicas por ele descritas.
Calculando ser casado com uma mulher resignada, jamais Samuel poderia supor que Libby tinha com ela guardada a arma do crime.
Libby era filha do perito que tutelou o revólver que matou a senhora Violet. Concluído o inquérito policial e o julgamento, por negligência, a pistola fora esquecida na gaveta de baixo do arquivo do escritório do senhor Moore, falecido ainda durante a infância da menina.
A moça chegou a enveredar pela carreira de detetive, no decurso do noivado com Samuel, no entanto desistiu da profissão em nome da prioridade de ser uma exímia mãe de família e dona de casa. Os fichários do pai foram um prato cheio para Libby inteirar-se dos meandros da esfera criminal. E foi lá que decifrou a nuvem que eclipsava a biografia pregressa do homem a quem elegeu para passar a vida.
No porão, sem o conhecimento de Samuel, preservou todos os documentos processuais, inclusive a prova material do delito com as impressões digitais do pequeno Sammy. Era a sua forma de ter contato com o fragmento perdido da existência do amado esposo. Omitido por ele e salvaguardado por ela.
Antes do nascimento de Paul, seu primeiro filho, Samuel pôde esbaldar-se na fartura de todo um salário executivo totalmente com Libby. Viajaram por vários pontos turísticos de seu país. Exploram Orlando, Las Vegas e Havaí, dentre outros.
Foi na Broadway que – contemplando uma peça de teatro clássica do Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda – os credos de Samuel foram brutalmente bombardeados com um ataque revisional em seus pilares dogmáticos. Libby, compenetrada pelo magnetismo sedutor do mito da Excalibur, permaneceu alheia ao pasmo do esposo. Samuel sentiu um nó no cérebro quando os atores, togados e encapuzados, circundaram a pedra e uniram suas espadas. Mormente, foram os trejeitos femininos de um dos soldados do rei que o fizeram ter uma epifania.
No dia do seu sexto aniversário, na Grande Loja Maçônica, apesar de todos os integrantes estarem trajados com roupas que cobriam todo o corpo, rememorou que, naquela feita, a mobilidade de um deles era bem mais delicada e sua massa corpórea, miúda. O que sua autodefesa psicológica apagara de suas lembranças, agora ressuscitava. Em seguida à cerimônia de passagem de grau de seu pai, vira-o, disfarçadamente, segurando a mão do homem franzino.
- VI -
A mulher que sabia demais
Posteriormente à tragédia que assolou sua infância, tudo se sucedeu muito rápido. Sammy não teve tempo hábil para tomar ciência da repercussão do ocorrido e seus desdobramentos, pois logo se viu internado na casa de custódia, em Charlotte.
Nos meses que precederam a entrada de Libby em sua vida, quando ainda vivia seus dias de homem isolado, sondou a respeito do desfecho da fatalidade daquele mês de novembro de 1952.
Passeando por Maple Road, bairro de Troy em que morava na infância, conversou com o atual proprietário da casa vizinha à que residiu. Há apenas três anos, Christopher comprara o imóvel do filho de Emily Sullivan, que era, com efeito, o único laço de amizade de sua mãe. Ele contou que, por ventura, soube ter Emily sido confinada num asilo de Hillsdale.
Visitada por Samuel em seu retiro, ainda lúcida, a senhora Sullivan externou confissões que o flagelaram a ponto de desestimulá-lo a prosseguir com as investigações. Bastou a Samuel saber que um dos maiores incentivos que atava Jack à maçonaria era um flerte romântico. O parrudo Jack também tinha o seu lado sonhador.
– Mulheres não frequentam a maçonaria, senhora Sullivan.
Emily, a fuxiquenta da rua, carecia de poucos incitamentos para desembuchar as notícias mais cabulosas que entretiveram a população de Maple Road naquela década em que a televisão ainda era artigo de luxo no mercado. Uma lágrima de crocodilo escoou pela face esquerda da idosa ao ser dada tão saborosa chance de picar com apetite o seu tímido interlocutor:
– Pois então, meu pequeno Sammy... Em certos ambientes, somos desnecessárias...
- VII -
A trama macabra e a ceia diabólica
Parcos andamentos do ponteiro marcador de minutos distavam o momento presenciado da zero hora. Na mesa, Libby compadecia-se com o constrangimento amargado por Samuel. Em sua concepção de mulher companheira, Jack ultrapassava todos os limites da crueldade.
As íris oculares de Jack ainda derramavam deboche em Samuel quando Libby retirou-se do recinto, levando os filhos para o quarto. Jack somente foi despertado de seu ódio ao avistar Libby voltando com a Kimber calibre 45 empunhada.
– Eu já vi armas antes, senhora Moore. Elas não me assustam.
– Eu sei, senhor Smith. Só não tem coragem de usá-la. Prefere ceder o serviço sujo para outro. E ainda é cínico o suficiente para repelir o próprio filho, que fez o que o senhor aspirava, mas não era valente o bastante para tal.
– A senhora brinca com a minha tristeza, senhora Moore. Foi depressivo perder a mulher que eu mais amei.
– Talvez Anthony Hall tenha compensado a sua angústia com muitas felicidades. O pobre Sammy foi o bode expiatório perfeito para que o senhor não precisasse carregar culpa e nem admitir para si o quanto estava disposto para desfrutar do seu paladar pela sodomia.
Os três estampidos do revólver disparado por Libby misturaram-se ao barulho dos rojões que estouravam nos arredores. Enquanto Samuel checava o pulso do pai, Libby corria para entregar aos meninos, no quarto de dormir, os presentes que o Papai Noel havia deixado sob a árvore. Patrick ganhou seu Phantom System.
Mingau Ácido (Marcelo Garbine)
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- AnônimoTexto profundo. Poderia dar origem a um livro...Enviado em 14/01/2018 às 23:40