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David vai à Lua
***************************************** I *****************************************

Quem, na infância, nunca teve aquele lugar secreto, próprio para fazer aventuras, que somente se torna mágico aos olhos de uma criança? No "Bobs Weigh Cafe", que, para David era a melhor cafeteria da Nova Zelândia, ele pensava nisto...

Há um biênio afastado do Brasil, o gerente de desenvolvimento de produtos nunca se desligou das experiências remotas da ultrajuventude. Os lazeres da fase de inocência que escoavam as horas infantis despreocupadas já transpareciam que o menino, ao adentrar o ciclo da maturidade, enveredaria por algum ofício de um ramo imaginativo.

Aos singelos olhos acriançados, facilmente, um casaco vestido no encosto de uma cadeira disposta num canto escuro do dormitório virava um malvado vilão das galáxias, os perfumes da penteadeira de sua mãe movimentavam-se no ritmo frenético do enredo produzido nos estúdios da sua pequerrucha cacholinha e as ondulações porosas de um campo eram por ele enxergadas como desertas crateras lunares.

A Lua... David adorava a Lua! Precocemente, leu Júlio Verne. Sua paixão era tamanha que ele acreditava irem as almas boas morar em seus furinhos. E com a luneta que ganhou do Papai Noel, aos oito anos de idade, em mil novecentos e oitenta e cinco, contemplou-a por muitas noites da segunda metade daquela finada década.

Entretanto, o instrumento científico apenas satisfez a sua filia poética, que era vasta, porém, não única. A criatividade dos joguetes engenhosos era irmã da arte de sonhar por intermédio dos versos.

E os disquinhos coloridos de estorinhas da Disney que soavam pelo autofalante da sua vitrolinha Philips amarela eram tão somente um tipo de aperitivo do mundo das peripécias emocionantes que exclusivamente divertiam e instigavam, mas – ele tinha lucidez – restringir-se a elas fazia o tira-gosto, sinônimo de aperitivo, de fato, ser concebido ao pé da letra, pois tirava o gosto fantástico dos estímulos geniais particulares, para o jovem, bem mais recreativos.

E, numa hora média de uma manhã de outono, durante o intervalo das aulas, caminhando pela zona proibida do amplo pátio do colégio em que estudava, David avistou um terreno anexo à retaguarda da edificação.

A área imensa, cercada plenamente por uma rede de ferro, era composta por montes de terra contíguos com superfícies permeáveis semelhantes a formigueiros. Eram como se fossem centenas de formigueiros gigantescos emaranhados, cujos topos margeavam uma altitude correspondente a uma dimensão pouco acima à estatura de seus joelhos.

Nas suas frequentes andanças solitárias, nunca o seu coraçãozinho palpitou tanto. Ao lampejo dos seus glóbulos oculares, estava frente a frente com o que, para ele, era o corpo celeste tão distante, a musa dos poetas, foco de seu brinquedo que ganhara do bom velhinho no último natal. Parecia um delírio, mas ele poderia passear sobre a Lua.

Estava, então, preenchido aquilo que, outrora, supria parcialmente o seu apetite pelo romântico: a poesia. Após aquele ínterim, a Lua também daria conta do seu lado desbravador, como no filme com Harrison Ford por ele visto, que não era de viagem espacial, mas encorajava os seus instintos aventureiros.

Quando atravessou a barreira metálica que separava o astro do planeta Terra, a trilha sonora de John Williams ressoou em sua cabeça. Nestes dias calmos, ele não brincava com as outras crianças. Distraía-se sozinho, idealizando fantasias que cultivava a partir de desenhos animados que vira no velho televisor Sanyo. Os desenlaces arquitetados na sua mente davam desfechos novos para os entretenimentos ingênuos.

Eventualmente, todavia, embrenhava-se de modo exótico nos grupos de fedelhos como um forasteiro fazendo as suas incursões pelo matagal de seres distintos de seu universo egocêntrico. E, numa destas jornadas existenciais, levou oito coleguinhas para o seu mais recente achado: a Lua.

Por longos meses daquele ano, correram e pularam pela atmosfera montanhosa, onde David era o alienígena e os oito companheiros, astronautas empenhados em capturá-lo. O segredo acerca das estripulias foi trancado a sete chaves porque o afluxo no local era vedado aos discentes.

***************************************** II *****************************************

Mas, agora, David era um estrangeiro em Queenstown. Tomando o seu cappuccino com chocolate – antes de ir ao aeroporto e pegar o avião para o estádio de rugby e assistir a um jogo do All Blacks, seu time adotado para torcer neste esporte que ele aprendera a apreciar – devaneava sobre as estratégias mercadológicas que adotaria para aprimorar o seu supremo produto, o seu negócio mais próspero: um jogo técnico de cartas cujos personagens eram astronautas e monstros selênicos.

Assim como, na lonjura de sua extrema mocidade, não se contentou com os limites impostos pelos artefatos prontos e embalados que eram as bolachas de vinil multicromadas, atualmente, profissional bem sucedido da carreira de marketing, não se atinha aos marcos da categoria gerencial de otimização. A ele aprazia tecer planejamentos inventivos.

Daí, David, engendrou o carteado verniano. O objetivo da competição – que mesclava a história e os hábitos do povo daquelas ilhas com a esfera que servia como palco da trama – era acumular uma gama de cartas suficientes para dominar a Lua. Cada peça de papelão continha dados sobre o satélite e os seus habitantes, os nômades que o invadiam e os recursos bélicos utilizados pelos combatentes do Reino de Hina, a deusa da Lua na mitologia polinésia.

A tática dos jogadores consistia em descartar os exemplares alheios à sequência pretendida e conservar os que interessavam à formação serial almejada. Entusiasta das rodas de truco da época da faculdade, David formulou o passatempo nerd inspirado no baralho ítalo-espanhol de quarenta cartas, sendo algumas representantes de armas e munições ou da geologia do orbe e outras de guerreiros selenitas e exploradores lunares.

***************************************** III *****************************************

Não foi necessário um transcurso significativo de semanas para que o homem da jogatina intelectiva, como ficou popularizado nos círculos publicitários daquele país e também da Austrália, começasse a entesourar uma soma invejável de bens provenientes dos lucros obtidos com as vendas da coleção de cartões temáticos jogáveis.

Valendo-se do crescente produto interno bruto neozelandês e da respectiva prosperidade econômica da nação insular, David comprou uma fazenda de ovelhas à beira do lago Wakatipu. A vida tornou-se tranquila, com conforto e reconhecimento.

Inclusive, ao viajar para Rotorua, conheceu um Marae – casa sagrada dos maoris – na qual um senhor chamado Akahata, chefe da tribo, recebeu-o com honras, mostrando-lhe gratidão pela carta número vinte e seis do jogo, que retratava um conquistador lunar de origem maori, que lutava naquele astro. Akahata ofereceu um moko – tatuagem maori – a David, que seria delineado em seu rosto. Um privilégio para ele, já que os mokos são símbolos de status naquela cultura – quanto mais conquistas o indivíduo reunia, mais a sua pele era circunscrita com os adornos – e David teve de mandar um "Não, obrigado!" ao simpático nativo, com o devido cuidado para não ofendê-lo.

O silvícola, por seu turno, não se melindrou e, para provar que estava tudo certo entre eles, esbugalhou os olhos até expor os nervos ópticos e colocou a língua para fora, tocando a covinha do queixo com a sua ponta, e dançou o Haka para David, que sorriu.

***************************************** IV *****************************************

Ao cair do sol de uma tarde de domingo monótona, degustando, na varanda, o seu Kumeu River, safra dois mil e nove, adquirido, há três meses, em sua visita à Marlborough, David notou um papel estampado, introduzido no ângulo inferior esquerdo da moldura de seu quadro pintado por Don Binney.

Levantou-se e verificou o objeto. "Estranho!" – refletiu – tendo em vista que residia singularmente naquele imóvel. Quem teria inserido o cartão número cinco – que exibia um soldado invasor – naquela pintura artística que projetava uma ave? Por que o gladiador estava riscado à caneta com aquela ilustração esquisita?

Em sua biblioteca, David pesquisou num livro sobre tatuagem maori e descobriu que o caractere rabiscado na carta cinco era uma arraia. A arraia, para os maoris, denota sabedoria. Até aí, muito bonito. Só que existe um ditado na tribo que alerta para o cuidado que se deve ter com este peixe que possui um ferrão mortal na ponta do rabo. Aí está o sentido da sabedoria: ser sábio a ponto de não mexer com a arraia. David interpretou, portanto, a arraia como um ícone da vingança. Pego de supetão, a primeira ideia de David foi remetida ao líder maori.

Teria sido ele que havia entrado em seu lar e enfiado a carta na moldura? Por qual motivo, dado que ele foi tão cordial como anfitrião? Interessante seria regressar à Rotorua e ter com o rústico do bosque novamente? Não! Definitivamente, David não estava disposto a sujeitar-se a encarar o primitivo dengoso mais uma vez. Não tinha saco pra aguentar aquele selvagem maluco fazendo caras e bocas e sacolejando e urrando feito um mentecapto. Isso sem falar da obrigação de submeter-se ao salamaleque dos maoris, aquele cumprimento ritual em que ele precisava encostar a sua testa e o seu nariz na testa e no nariz do fulano. Sai fora!

***************************************** V *****************************************

O fim de semana seguinte veio e o cérebro do publicitário estava prestes a explodir. David foi esfriar os ânimos dando uma volta pelas ruas convizinhas. Chegou ao Parque Nacional de Fiordland com o propósito de percorrer uma trilha. Cruzando um atalho que dava ingresso à rota Kepler Track, vislumbrou, à sombra de uma árvore Kauri Tree, quatro adolescentes que se entretinham com o que aparentava ser um baralho.

"Como será que se grita 'seis, ladrão!' neste país?" – borboleteou David com os lábios repuxados de forma zombeteira, enquanto se aproximava da turma de rapazes. Alcançando a agremiação de moleques espinhudos, ouviu o mais moço e desengonçado dentre os mancebos vangloriar-se de que formara uma sequência que lhe conferia a vitória na disputa.

– Eu tenho uma pistola de enxofre defumadora de selenitas mauricinhos – carta onze! – uma cratera de impacto para emergências escatológicas – carta trinta e nove! – e um soldado bravo índio cacique Ave-kiwi-que-choca-ovo-de-pintassilgo! – carta número cinco, seu marreco! Ganhei!

David ficou paralisado. Era comum para ele ver pessoas festejando com o seu trabalho erudito, mas, desta feita, tratava-se do escárnio mais sério que ele presenciara em sua vida. O autor do brinquedo teve um insight!

***************************************** VI *****************************************

Ventava nas palmeiras do luxuoso colégio daquele bairro nobre de São Paulo.

E, atuando numa saga inédita, como já era costume da equipe mirim, David e os oito garotos coordenavam-se para excursionar pela Lua. O pequeno orifício aberto na cerca que servia de entrada improvisada do esconderijo permitia apenas a passagem de um estudante por vez. David foi o sexto pirralho a transpassar o bloqueio, logo depois de Pablo, que tropeçou e chocou os glúteos contra um plano pedregoso.

– Índio bate bunda na terra firme! Pede pra pajé preparar feitiço da cura com pomada de cocô de pombo! – Achincalhou, David, com cara de ordinário.

– "Por qué no te callas!" – Berrou o boliviano, no mesmo instante em que se esforçava para arregalar os olhinhos, que, normalmente, eram apenas dois risquinhos em sua carranca zangada.

A folia daquela terça-feira não foi tão engraçada assim. As trocas de gentilezas entre David e Pablo acabaram por amargar os espíritos puros de ambos os anjinhos. Rancores foram guardados e culminaram num incidente de gosto duvidoso. David, investido em seu papel de alienígena, saltitava sobre as crateras enquanto era perseguido pelos oito astronautas. Enraivecido, Pablo tomou a dianteira e agarrou o extraterrestre pelo calcanhar.

Desprovido de seus pés para tocar o solo, David teve de usar a cavidade bucal para aterrissar no chão duro. Um pedaço de cano enferrujado, que para os imaculados meninos era um revólver de raio laser, quando nas mãos do miúdo David, foi útil para retaliar o tombo, ao unir-se à testa indígena de maneira rápida e ruidosa, devido ao intenso deslocamento de ar. Colapsado, Pablo foi recolhido na unidade de pronto atendimento do liceu e, meia hora depois, retirado de ambulância. E só retornou à sala de aula no semestre subsequente.

***************************************** VII *****************************************

Apegado às experimentações passadas, ao bolar a recreação geek, o inventor fez questão de programar todos os detalhes para homenagear os camaradas de escola. Cada criança que brincou na Lua foi lembrada num fragmento do jogo cujo número fora selecionado caprichosamente de acordo com a ordem de acesso à réplica do satélite na última ocasião em que estiveram lá. Posteriormente ao nocaute do xinguzinho, nunca mais voltaram ao terreno irregular.

E, como nesta oportunidade, foi o Bolívia o quinto membro da galera a meter-se para dentro do recinto clandestino, a ele coube a fração de cartolina número cinco. Contudo, David, atribuiu as honras do seu jeito galhofeiro. Sacaneou todos, principalmente o indiozinho. Ele sempre riu por achar que Pablo tinha cara de filhote de pintassilgo. Queria fazer uma caricatura do boliviano misturada com o pássaro. Mas, em virtude da ave típica da Nova Zelândia ser o Kiwi, optou por fundi-lo com o espécime da fauna da região para manter a coerência do tema do jogo.

Os aplausos reverenciados ao expert das campanhas comerciais causaram um desplugamento dele das maquinações preliminares de sua obra prima. Desfrutando o sabor da glória, interinamente, relaxou suas características cognitivas de associações dos elementos. Nada obstante, a centelha de luz nele provocada pelo usuário juvenil de sua criação trouxe à tona a gênese estrutural do engenho.

E, então, David rememorou que, num encontro de ex-alunos do tradicional instituto de educação, soube que Pablo partiu para a terra de seus ancestrais a fim de cursar zootecnia. Nesta circunstância, aliás, aproveitou para tirar mais uma onda e disse que "o animalzinho dos Andes" – como o batizou carinhosamente – "aprenderia a cuidar de seus parentes".

No entanto, o que o sábio debochado e pretenso omnissapiente não tinha ciência era de que Pablo especializou-se no trato de gados ovinos e, por esta razão, no decorrer da universidade, escolheu a terra dos carneiros para estagiar. E o destino esmerou-se ao querer que a criaturinha de cabelo tigela fosse empregar-se na fazenda de ovelhas de David. Por conseguinte, foi simples para o boliviano escalar a grade situada no andar térreo e botar o item na guarnição da tela.

Mas David, até agora, não havia decifrado esta parte do enigma e ingeria sossegado os goles do que restava da sua bebida quente e espumosa com canela e chantili. Olhou pela janela do "Bobs Weigh Cafe" e para o seu relógio. Ainda faltavam dez minutos... Dava tempo de ir ao toalete.

Ao abrir a porta do quartinho das latrinas, David viu um homem furioso de pele vermelha e olhos exíguos, aparentemente com as pálpebras cerradas, segurando uma barra de ferro oxidado com as duas mãos posicionadas por cima do ombro direito.

David não foi ao estádio de rugby.

Marcelo Garbine
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  • Anônimo David é especialista em luas, desde criancinha! Ah!... o universo infantil se estende à vida dos adultos felizes. Ou não? O baralho neozelandês faria sucesso entre novos visitantes da Lua daquele famoso colégio de São Paulo!
    Enviado em 01/01/2018 às 23:48