As gotas dos olhos que escoaram pelo Danúbio
***************************************** I *****************************************
A rotina e a memória
À meia luz, a vista de Bence Kocsis foi-se acostumando com a iluminação escassa do quarto de dormir. Deitado, olhava a tinta branca do teto do qual ainda podia sentir olfativamente o seu frescor e tentava recordar-se desta última manutenção doméstica.
Vencida a inércia matutina, entreviu-se, ainda com as pálpebras semicerradas, no espelho do lavabo, fazendo a sua higiene bucal cotidiana. Seu estado mental quase letárgico não lhe permitiu ser tomado por um choque espiritual especulativo, daqueles que nos obrigam a refletir sobre quem somos, mas uma sensação esquisita lembrava-lhe da frase clássica de Shakespeare.
Já a caminho do serviço com o seu Trabant amarelo soviético modelo 1984, como de costume, entretinha-se com a paisagem do rio Danúbio. Os movimentos automáticos comuns a um motorista que dirige diariamente pela mesma rodovia há mais de dez anos davam-lhe o conforto da divagação.
Convertido desde a adolescência ao budismo, Bence conservava o hábito de não se preocupar muito. Não supunha diálogos e raramente elaborava conjecturas. Somente quando posto frente a frente com as situações era que ele decidia como agir. Nas raias da virilidade recém-adquirida por quem acaba de adentrar a casa decimal balzaquiana, o rapaz atribuía à razão de sua serenidade frequente as constatações elementares que simplificam a vida de qualquer ser humano, como a conclusão que não adianta tentar antever as casualidades, afinal as coisas sempre ocorrem de modo distinto das dúzias de hipóteses que conseguimos formular.
Talvez, seja este um dos principais propósitos que o levou a não engrandecer a estranheza por não se sentir familiarizado com a fisionomia dos agentes de segurança que guardavam a entrada da empresa em que trabalhava. Possivelmente, também era este o motivo pelo qual ele tinha tantos amigos. As pessoas estimavam Bence porque ele exalava tranquilidade.
Sentado à mesa de reunião, a priori, não identificava congruência nas construções verbais de seus pares, entretanto, seu modo taciturno de ser, proporcionava-lhe tempo hábil para unir as peças do mosaico e, ao chegar a sua oportunidade de fazer uso da palavra, já conhecia o contexto a respeito do qual deveria explanar.
Suas falas curtas e seus trejeitos discretos procrastinaram a percepção de uma excentricidade sutil em suas atitudes por parte dos colegas. Porém, a partir da terceira manifestação do prestigiado diretor de marketing, a condição estupefata nos semblantes dos executivos não podia mais ser disfarçada pelo controle para que os olhos não se mostrassem excessivamente arregalados.
As opiniões polêmicas de Bence divergiam muito de sua moderação característica de praxe. A novidade comportamental incomodava tanto pela extravagância como por destoar do conservadorismo do ambiente e das impressões saudáveis que os outros preservavam dele. Até o momento em que o supervisor de mídia não se conteve e, pela primeira vez, testemunhou-se Bence sendo admoestado publicamente.
– Senhor Kocsis, a revista Piacgazdaság carrega uma história de cento e vinte e oito anos. O senhor Polányi, caso estivesse vivo, jamais admitiria uma teoria nada ortodoxa como a que acaba de expor sobre o papel feminino no mercado de trabalho. Basta lembrarmos que a esposa do senhor Polányi, avó do atual presidente da empresa, que nesta mesa está presente, foi uma das primeiras mulheres de Budapeste a ocupar um cargo municipal importante.
Aparentando indiferença aos burburinhos, Bence não perdeu a pose e sustentou a controvérsia:
– Mas é fato, senhor Lengyel. Não sou eu quem diz, são dados científicos de pesquisa. O intestino grosso das mulheres é constituído por um tubo digestivo bem mais estreito que o do homem, o que faz suas massas fecais demorarem mais para transitarem e serem expelidas. Por ficarem armazenadas por um período mais longo, a ação bacteriana é maior, produzindo uma quantidade expressiva de gás sulfeto de hidrogênio, que entra na corrente sanguínea e acaba sendo absorvido pelo cérebro, tornando-o mais debilitado. Este fenômeno explica os baixos índices de desempenho das indústrias que são administradas por mulheres.
– Não publicaremos esta matéria, senhor Kocsis. A reunião está encerrada.
Bence foi para a sua sala. Da escrivaninha, fitou por alguns minutos a ponte Szabadság, plenamente visível da vista de sua janela. Ficou imaginando como uma obra tão robusta do século XIX pôde ser destruída durante a Segunda Guerra Mundial e reconstruída num intervalo tão breve.
Sua memória também era antiga. Embaixo do porta-retratos com a foto de sua namorada, estava um bilhete por ela escrito, parabenizando-o pelo seu acesso à terceira década de existência. Mas, assim como a ponte em tempos belicosos, os alicerces de suas reminiscências também não estavam integrados. O que ocorrera recentemente de tão significativo a ponto de criar um abismo entre o instante vigente e dez triênios de história numa vida calma?
Bence interfonou para sua secretária e comunicou sua necessidade de sair mais cedo, usando a desgastada desculpa de uma consulta médica.
***************************************** II *****************************************
A história e o oculto
Margeando o Danúbio, desta feita, pela pista contrária, transpôs o percurso mecânico de volta para casa, inclusive, pela zona deserta da estrada, por onde poucos veículos trafegavam. Naquele trecho de asfalto envolto por bosques, dificilmente Bence avistava outro carro. Isto era fundamento suficiente para que as fortes marcas de pneus em forma de zigue-zague despertassem a sua atenção.
Bence parou no acostamento e observou que os resíduos negros de borracha terminavam numa árvore. Perto da raiz corpulenta, havia alguns cacos brilhantes. Curioso, passou a mão sobre as lascas e viu as pontas de seus dedos sangrarem. Reparou, então, que o lado esquerdo do capô de seu veículo estava danificado e o farol, quebrado.
Até o antepenúltimo dia, as chuvas castigaram a capital húngara. Bence apenas sabia disto porque ouvira notícias sobre os estragos por intermédio do rádio de seu carro, há poucos minutos, mas não tinha nenhuma recordação do episódio.
"Se aqueles estilhaços de vidro não foram escoados pelas águas e os resquícios escuros de pneus não foram apagados, o incidente havia ocorrido há menos de três dias" - Pensou Bence.
Nos arredores do tronco, notou indícios familiares. Conferiu a sola do seu sapato e não hesitou em julgar que as pegadas eram suas. Os desenhos geométricos estampados na lama eram idênticos à simetria procedente do relevo de seu calçado.
Mal começou a seguir os sinais, nos primeiros metros, já pôde avistar uma amoreira bem distante. Bence, então, decifrou por que se introduzira na jornada por ali.
Em sua infância vivida em Miskolc, nos primórdios dos anos noventa, morou em uma casa deslocada da cidade. A atmosfera campestre que caracterizava o local era coroada pelo pomar que a família Kocsis cultivava no quintal.
Contudo, a brandura era ilusória. Seu pai foi um operário beberrão. Ao toque da sirene da metalúrgica, não perdia tempo em sua ida à taberna, na Praça Santa Ana. Enquanto sua mãe, católica fervorosa, assistia à missa na igreja situada no mesmo largo, o homem de aparência abatida e olhar apático, desanuviava suas frustrações com todas as doses de Pálinka que o seu curto salário podia comprar.
Na escola da vila, o menino escondia os hematomas provenientes das constantes surras paternas sob o uniforme. A mãe, dona de casa submissa ao marido, fazia vista grossa ao abuso do pátrio poder.
Ao pequeno Bence restava a sombra da amoreira. Era lá que a sua testa encontrava o aconchego em seu par de joelhos, amparado por toda a escuridão que conseguia formar forçosamente com seus braços entrelaçados no entorno de seu rosto. Suas pálpebras cerradas com ódio interrompiam o curso das lágrimas e faziam arder os olhos, enquanto seus dentes de leite miúdos trituravam avidamente um punhado da fruta. A dor tinha gosto de amora.
Deduziu que, ao derrapar na autoestrada e bater no tronco, devia ele estar contagiado por alguma angústia grave que tirou o seu foco. Sua memória instintiva logo o impeliu a marchar tendo a amoreira como diretriz. Era sua chance de descobrir a causa da desconexão em que se achava. Prosseguiu, pois, no rumo da trilha.
Percorridos alguns quilômetros, seus ouvidos começaram a distinguir um barulho que contrastava com o silêncio com o qual há horas habituara-se. Mais adiante, inferiu tratar-se de um violino. Para saciar sua curiosidade, não precisou rever seu trajeto porque a melodia coincidia com o itinerário da amoreira.
Não tardou a identificar o ritmo alegre da Csárdás. Cerca de duas centenas de passos foram o bastante para Bence ter a convicção de que o instrumento reproduzia o andamento sonoro do bailado folclórico de seu país. Desde o início de seu namoro com Boglárka, adaptara-se com a cultura tradicional. A moça era uma exímia bailarina.
As práticas advindas da predileção de Bence pela religiosidade oriental auxiliaram-no a harmonizar-se com o sexo oposto. No princípio da puberdade, a meditação e a busca do equilíbrio interior transformou-o num homem benevolente que logrou sucesso ao perdoar a cumplicidade de sua progenitora, amaciando o rancor que, até então, carregara. Uma barreira rompeu-se para que o jovem entregasse o seu coração para uma mulher, a despeito da fúria originada pela figura materna. A ojeriza quedou-se alojada em seu subconsciente.
A extroversão de Boglárka era discrepante comparada à quietude de Bence. Afeita a festas, a menina dava o colorido que a mansidão dele pedia em contrapartida. O casamento já tinha data marcada. Boglárka mudar-se-ia para o seu apartamento. Bence já o havia reformado. A pintura deu o toque final do acabamento.
A consonância produzida pelo arco no violino friccionando as cordas aumentava enquanto Bence atravessava uma plantação de girassóis. Com seu discernimento distante, meramente devaneava como teria sido mais poético se Mendel tivesse utilizado girassóis em seus experimentos biológicos em vez de ervilhas.
Da hereditariedade das ervilhas para a sua própria, a abstração delicada era suplantada pelos prognósticos do seu futuro com Boglárka. Como seriam os seus filhos? O comportamento detestável do pai seria por ele imitado? Boglárka era digna de germinar sua semente?
Cruzada a plantação, aos pés da amoreira, Bence enxergou a folia. Doze participantes estavam ali. As mulheres com seus vestidos preponderantemente vermelhos e cabelos cobertos com lenços floridos. Os homens com seus chapéus, coletes, calças e botas pretos e camisa branca com mangas compridas, largas e folgadas. No meio, um violino era tocado com veemência.
Até aí, era apenas um festejo com dança típica que ele já conhecia. Mas havia algo sinistro, um elemento alheio ao rito padrão. Uma senhora com indumentária cigana passava com uma bandeja diante dos convivas, servindo uma bebida de coloração vermelha.
Um calafrio dominou a coluna vertebral de Bence quando o violinista, ao mirar de soslaio, desconcentrando-se da cadência ressonante, abriu os olhos surpresos, avistando-o e parando de tocar o instrumento, compelindo todos os foliões a sossegarem-se.
Uma das dançatrizes acenou e gritou para Bence:
– Jumata!
Estudioso da mitologia fino-húngara e seus personagens e desdobramentos, Bence sabia ser Jumata o Deus do céu e do trovão. Todavia isto o assustava menos do que o fato de conhecerem-no.
Paralisado, Bence contemplou os sectários formando uma fila indiana e peregrinando em seu destino. Quando nele chegaram, cercaram-no em círculo.
Bence, agora Jumata, ingeriu o líquido argiláceo avermelhado a ele estendido. Sua respiração ficou mais graciosa, sua face, mais frágil. A bebida era doce, não queimava na língua, não suprimia o seu estado de consciência. E, mesmo não sendo alucinógeno, alterou sua compreensão de si próprio.
Sentindo o ar penetrar mais suavemente em seus pulmões, ao recostar a nuca na região superior de seu dorso, Jumata certificou-se que o céu continuava azul, porém, não mais azul força aérea, como todo o peso militar das regras da vida adulta em cima das suas costas, mas, sim, azul bebê, bem mais clarinho, bem mais limpo, quase um azul Alice, remetendo-o à época de maravilhas em que ainda não era proibido sonhar.
Doía, era verdade, mas tudo na vida tem um preço e o montante cobrado pela esperança era a dor. Jumata via-se perdido, entretanto, com a concepção de que detinha um prazo maior de existência para livrar-se das amarras que com ele vieram ao mundo.
Cada um dos adeptos agradeceu o Deus do céu e do trovão pelo fim dos temporais. Jumata sabia que não era nada disto, mas também estava grato pela estiagem que preservou as marcas de pneus, os fragmentos de vidro do farol e os vestígios de seu solado. Sem este capricho da natureza, não teria ele encontrado a rota que lhe revelaria sua furtiva identidade. A consistência pastosa do suco vermelho permitia que Jumata acalentasse a agonia com a fúria voraz de seus dentes, que não eram mais de leite.
***************************************** III *****************************************
A descoberta e o sentido
As semanas que se sucederam escorreram como areia entre os dedos de Bence. Recobrada sua conduta socialmente aceitável, rapidamente, o dia da bizarrice foi completamente esquecido pelos executivos. A repetição de suas maneiras normais de outrora, salvaguardou o apreço que mantinham por ele.
Novos projetos de trabalho vieram ao escritório de Bence. Conhecedor que agora era de seu íntimo, quis ir além de seus atributos como líder do departamento de propaganda. Empolgado, recebeu autorização para realizar tarefas de campo, desviando-se de sua função.
Chamou a atenção da revista Piacgazdaság o crescente turismo de Budapeste. Uma onda excursionista, principalmente oriunda da Sérvia, da Romênia e de outros países convizinhos do leste europeu, tomou conta da Hungria. Uma reportagem acerca deste fenômeno mercadológico seria publicada e Bence, investido na fase atual de sua carreira, assumiu a dianteira, e foi entrevistar o presidente da empresa promotora de eventos responsável pela ascensão deste nicho.
Ao coletar os dados iniciais e examinar as informações, Bence detectou que estava pisando em terreno movediço. A companhia turística era gerenciada pela máfia húngara, que perpetrava o seu péssimo procedimento de assassinar os seus concorrentes. Como os seus traços de personalidade eram avessos a pressuposições, não computou nenhum cálculo antes de mergulhar de cabeça no reverso e defrontar-se com as circunstâncias concretas da trama.
Sua assistente agendou seu encontro com o senhor Balázs. Quando estacionou o seu automóvel no pátio da empresa Utazás, Bence ficou deslumbrado com tamanha ostentação. O acesso aos corredores que levavam à sala de imprensa era forrado com um tapete persa e totalmente revestido com pastilhas de mármore confeccionadas artesanalmente sob medida e lapidadas em detalhes dourados.
Ao contrário do que idealizara, o senhor Balázs não o aguardava num espaço propício para conferências. O diálogo ocorreu no camarote supradisposto de um auditório de teatro. Balázs gostava mesmo de exibir seu luxo. No palco, uma encenação de dança erudita era representada. A música, de tão agradável, não era empecilho para a conversa. E os gestos leves dos dançarinos davam o tom pacato para que as interlocuções acontecessem com amenidade. A lonjura considerável daquela instalação da plateia para o cenário também cooperava com a privacidade dos dois homens.
O senhor Balázs não poupava adjetivos para supervalorizar a importância de sua empreitada turística para a economia húngara em virtude de sua contribuição para o produto interno bruto. Para ele, a publicação de um artigo na revista de negócios mais célebre do país era uma cartada conveniente para fortalecer a sua posição perante o governo federal e angariar recursos financeiros provindos dos cofres públicos pelas leis de incentivos fiscais ao turismo.
Bence, por seu turno, que não resguardava simpatia nenhuma por privilégios e apadrinhamentos, era uma presa complexa para os argumentos tendenciosos do mafioso. Apenas havia aceitado o encargo devido ao seu interesse conceitual por organizações criminosas e pela adrenalina obtida na atuação no âmbito do jornalismo investigativo. Balázs, um ilustre orador, utilizava os ínterins de clímax do espetáculo, aproveitando-se da desatenção de Bence, para nele inculcar as premissas mais vantajosas para a companhia Utazás.
E foi percebendo a distração explícita de seu interlocutor, que Balázs valeu-se de seus discursos mais sórdidos. O indivíduo perverso não entendia por quê, mas era tão profunda a introspecção do periodista, que ele presumiu poder falar o que quisesse que Bence consentiria caladamente.
Mas as indecências de Balázs só poderiam estar provocando algum efeito se fossem no plano inconsciente porque Bence já não ouvia mais nada. Ele reconheceu a bailarina que preencheu o centro do tablado: era Boglárka.
O fluxo rítmico da moça sacudia diretamente dentro da cacholinha confusa de Bence. Se para ele já era um incômodo a arte e a desenvoltura talentosa de sua amada, muito mais se acentuava o desalento quando executadas naquele covil gângster.
O chefão indecoroso mencionou um encontro que tivera com Bence, naquele mesmo lugar, há aproximadamente dois meses, que, por suas contas, calhou na véspera do desvendamento de seus rastros. Bence não tinha lembrança do evento e muito menos de ter demonstrado contentamento pela mesma atração, conforme rememorou Balázs, ao interpretar erroneamente o assombro dele. A alusão fez Bence conceber a justificativa de sua tormenta que culminou no acidente.
Atordoado, Bence lançou mão de todas as concordâncias pertinentes para que Balázs deixasse-o partir em paz.
Ao engatar a marcha ré do Trabant e acelerar por alguns metros, Bence viu a suntuosa edificação diminuir de tamanho em relação à distância que tomava. Era uma espécie de despedida proporcionada pelo vislumbre da última imagem necessária para assentar a certeza de que era a ocasião cabida do ponto derradeiro. Os acontecimentos haviam enveredado por meandros que garantiam não restarem dúvidas de que os eixos dos valores mais essenciais foram abalados.
Já na estrada, contornando o deflúvio hídrico que tanta companhia fizera-lhe em seus ápices de solitude ao volante, Bence determinou que a valsa de Johann Strauss II seria o seu fundo musical imaginário mais adequado para o desfrute de seu flerte final com o segundo maior rio da Europa.
Pelo mesmo vão de ingresso ao bosque, na quota de extensão isolada que lhe cabia, embrenhou-se na mata até topar com uma amoreira. E, em seu galho mais espesso, amarrou o cabo com laço que untaria o seu gargalo.
– Jumata!
Era Boglárka, vociferando em tom tênue. Com seus olhos complacentes e aspecto racional, denotava bem mais sapiência do que o seu sorriso social permitia que se inferisse.
Bence, intrigado, já não sabia mais de qual dos dois universos paralelos a sua querida conhecia-o.
Fixando os olhos embaralhados do seu escolhido, Boglárka procurou descansá-lo:
– Você acha mesmo que o meu amor por você existiria se eu não conhecesse a sua alma, Jumata?
***************************************** IV *****************************************
Aos domingos, a família almoçava no jardim. Boglárka trazia à mesa o pimentão ao alho. A vida em Miskolc era bem singela.
Hadúr, brincando debaixo da árvore, lançava as pequenas frutinhas cor de vinho umas contra as outras como se fossem bolinhas de gude.
– Hadúr, o almoço está pronto!
A criança corria sem camisa para junto dos pais, sob o sol tímido de dezembro do hemisfério norte, com seus dedinhos e boca pintados com a seiva vermelha. Suas costas eram inteiramente brancas, sem nenhum machucado.
Marcelo Garbine
A rotina e a memória
À meia luz, a vista de Bence Kocsis foi-se acostumando com a iluminação escassa do quarto de dormir. Deitado, olhava a tinta branca do teto do qual ainda podia sentir olfativamente o seu frescor e tentava recordar-se desta última manutenção doméstica.
Vencida a inércia matutina, entreviu-se, ainda com as pálpebras semicerradas, no espelho do lavabo, fazendo a sua higiene bucal cotidiana. Seu estado mental quase letárgico não lhe permitiu ser tomado por um choque espiritual especulativo, daqueles que nos obrigam a refletir sobre quem somos, mas uma sensação esquisita lembrava-lhe da frase clássica de Shakespeare.
Já a caminho do serviço com o seu Trabant amarelo soviético modelo 1984, como de costume, entretinha-se com a paisagem do rio Danúbio. Os movimentos automáticos comuns a um motorista que dirige diariamente pela mesma rodovia há mais de dez anos davam-lhe o conforto da divagação.
Convertido desde a adolescência ao budismo, Bence conservava o hábito de não se preocupar muito. Não supunha diálogos e raramente elaborava conjecturas. Somente quando posto frente a frente com as situações era que ele decidia como agir. Nas raias da virilidade recém-adquirida por quem acaba de adentrar a casa decimal balzaquiana, o rapaz atribuía à razão de sua serenidade frequente as constatações elementares que simplificam a vida de qualquer ser humano, como a conclusão que não adianta tentar antever as casualidades, afinal as coisas sempre ocorrem de modo distinto das dúzias de hipóteses que conseguimos formular.
Talvez, seja este um dos principais propósitos que o levou a não engrandecer a estranheza por não se sentir familiarizado com a fisionomia dos agentes de segurança que guardavam a entrada da empresa em que trabalhava. Possivelmente, também era este o motivo pelo qual ele tinha tantos amigos. As pessoas estimavam Bence porque ele exalava tranquilidade.
Sentado à mesa de reunião, a priori, não identificava congruência nas construções verbais de seus pares, entretanto, seu modo taciturno de ser, proporcionava-lhe tempo hábil para unir as peças do mosaico e, ao chegar a sua oportunidade de fazer uso da palavra, já conhecia o contexto a respeito do qual deveria explanar.
Suas falas curtas e seus trejeitos discretos procrastinaram a percepção de uma excentricidade sutil em suas atitudes por parte dos colegas. Porém, a partir da terceira manifestação do prestigiado diretor de marketing, a condição estupefata nos semblantes dos executivos não podia mais ser disfarçada pelo controle para que os olhos não se mostrassem excessivamente arregalados.
As opiniões polêmicas de Bence divergiam muito de sua moderação característica de praxe. A novidade comportamental incomodava tanto pela extravagância como por destoar do conservadorismo do ambiente e das impressões saudáveis que os outros preservavam dele. Até o momento em que o supervisor de mídia não se conteve e, pela primeira vez, testemunhou-se Bence sendo admoestado publicamente.
– Senhor Kocsis, a revista Piacgazdaság carrega uma história de cento e vinte e oito anos. O senhor Polányi, caso estivesse vivo, jamais admitiria uma teoria nada ortodoxa como a que acaba de expor sobre o papel feminino no mercado de trabalho. Basta lembrarmos que a esposa do senhor Polányi, avó do atual presidente da empresa, que nesta mesa está presente, foi uma das primeiras mulheres de Budapeste a ocupar um cargo municipal importante.
Aparentando indiferença aos burburinhos, Bence não perdeu a pose e sustentou a controvérsia:
– Mas é fato, senhor Lengyel. Não sou eu quem diz, são dados científicos de pesquisa. O intestino grosso das mulheres é constituído por um tubo digestivo bem mais estreito que o do homem, o que faz suas massas fecais demorarem mais para transitarem e serem expelidas. Por ficarem armazenadas por um período mais longo, a ação bacteriana é maior, produzindo uma quantidade expressiva de gás sulfeto de hidrogênio, que entra na corrente sanguínea e acaba sendo absorvido pelo cérebro, tornando-o mais debilitado. Este fenômeno explica os baixos índices de desempenho das indústrias que são administradas por mulheres.
– Não publicaremos esta matéria, senhor Kocsis. A reunião está encerrada.
Bence foi para a sua sala. Da escrivaninha, fitou por alguns minutos a ponte Szabadság, plenamente visível da vista de sua janela. Ficou imaginando como uma obra tão robusta do século XIX pôde ser destruída durante a Segunda Guerra Mundial e reconstruída num intervalo tão breve.
Sua memória também era antiga. Embaixo do porta-retratos com a foto de sua namorada, estava um bilhete por ela escrito, parabenizando-o pelo seu acesso à terceira década de existência. Mas, assim como a ponte em tempos belicosos, os alicerces de suas reminiscências também não estavam integrados. O que ocorrera recentemente de tão significativo a ponto de criar um abismo entre o instante vigente e dez triênios de história numa vida calma?
Bence interfonou para sua secretária e comunicou sua necessidade de sair mais cedo, usando a desgastada desculpa de uma consulta médica.
***************************************** II *****************************************
A história e o oculto
Margeando o Danúbio, desta feita, pela pista contrária, transpôs o percurso mecânico de volta para casa, inclusive, pela zona deserta da estrada, por onde poucos veículos trafegavam. Naquele trecho de asfalto envolto por bosques, dificilmente Bence avistava outro carro. Isto era fundamento suficiente para que as fortes marcas de pneus em forma de zigue-zague despertassem a sua atenção.
Bence parou no acostamento e observou que os resíduos negros de borracha terminavam numa árvore. Perto da raiz corpulenta, havia alguns cacos brilhantes. Curioso, passou a mão sobre as lascas e viu as pontas de seus dedos sangrarem. Reparou, então, que o lado esquerdo do capô de seu veículo estava danificado e o farol, quebrado.
Até o antepenúltimo dia, as chuvas castigaram a capital húngara. Bence apenas sabia disto porque ouvira notícias sobre os estragos por intermédio do rádio de seu carro, há poucos minutos, mas não tinha nenhuma recordação do episódio.
"Se aqueles estilhaços de vidro não foram escoados pelas águas e os resquícios escuros de pneus não foram apagados, o incidente havia ocorrido há menos de três dias" - Pensou Bence.
Nos arredores do tronco, notou indícios familiares. Conferiu a sola do seu sapato e não hesitou em julgar que as pegadas eram suas. Os desenhos geométricos estampados na lama eram idênticos à simetria procedente do relevo de seu calçado.
Mal começou a seguir os sinais, nos primeiros metros, já pôde avistar uma amoreira bem distante. Bence, então, decifrou por que se introduzira na jornada por ali.
Em sua infância vivida em Miskolc, nos primórdios dos anos noventa, morou em uma casa deslocada da cidade. A atmosfera campestre que caracterizava o local era coroada pelo pomar que a família Kocsis cultivava no quintal.
Contudo, a brandura era ilusória. Seu pai foi um operário beberrão. Ao toque da sirene da metalúrgica, não perdia tempo em sua ida à taberna, na Praça Santa Ana. Enquanto sua mãe, católica fervorosa, assistia à missa na igreja situada no mesmo largo, o homem de aparência abatida e olhar apático, desanuviava suas frustrações com todas as doses de Pálinka que o seu curto salário podia comprar.
Na escola da vila, o menino escondia os hematomas provenientes das constantes surras paternas sob o uniforme. A mãe, dona de casa submissa ao marido, fazia vista grossa ao abuso do pátrio poder.
Ao pequeno Bence restava a sombra da amoreira. Era lá que a sua testa encontrava o aconchego em seu par de joelhos, amparado por toda a escuridão que conseguia formar forçosamente com seus braços entrelaçados no entorno de seu rosto. Suas pálpebras cerradas com ódio interrompiam o curso das lágrimas e faziam arder os olhos, enquanto seus dentes de leite miúdos trituravam avidamente um punhado da fruta. A dor tinha gosto de amora.
Deduziu que, ao derrapar na autoestrada e bater no tronco, devia ele estar contagiado por alguma angústia grave que tirou o seu foco. Sua memória instintiva logo o impeliu a marchar tendo a amoreira como diretriz. Era sua chance de descobrir a causa da desconexão em que se achava. Prosseguiu, pois, no rumo da trilha.
Percorridos alguns quilômetros, seus ouvidos começaram a distinguir um barulho que contrastava com o silêncio com o qual há horas habituara-se. Mais adiante, inferiu tratar-se de um violino. Para saciar sua curiosidade, não precisou rever seu trajeto porque a melodia coincidia com o itinerário da amoreira.
Não tardou a identificar o ritmo alegre da Csárdás. Cerca de duas centenas de passos foram o bastante para Bence ter a convicção de que o instrumento reproduzia o andamento sonoro do bailado folclórico de seu país. Desde o início de seu namoro com Boglárka, adaptara-se com a cultura tradicional. A moça era uma exímia bailarina.
As práticas advindas da predileção de Bence pela religiosidade oriental auxiliaram-no a harmonizar-se com o sexo oposto. No princípio da puberdade, a meditação e a busca do equilíbrio interior transformou-o num homem benevolente que logrou sucesso ao perdoar a cumplicidade de sua progenitora, amaciando o rancor que, até então, carregara. Uma barreira rompeu-se para que o jovem entregasse o seu coração para uma mulher, a despeito da fúria originada pela figura materna. A ojeriza quedou-se alojada em seu subconsciente.
A extroversão de Boglárka era discrepante comparada à quietude de Bence. Afeita a festas, a menina dava o colorido que a mansidão dele pedia em contrapartida. O casamento já tinha data marcada. Boglárka mudar-se-ia para o seu apartamento. Bence já o havia reformado. A pintura deu o toque final do acabamento.
A consonância produzida pelo arco no violino friccionando as cordas aumentava enquanto Bence atravessava uma plantação de girassóis. Com seu discernimento distante, meramente devaneava como teria sido mais poético se Mendel tivesse utilizado girassóis em seus experimentos biológicos em vez de ervilhas.
Da hereditariedade das ervilhas para a sua própria, a abstração delicada era suplantada pelos prognósticos do seu futuro com Boglárka. Como seriam os seus filhos? O comportamento detestável do pai seria por ele imitado? Boglárka era digna de germinar sua semente?
Cruzada a plantação, aos pés da amoreira, Bence enxergou a folia. Doze participantes estavam ali. As mulheres com seus vestidos preponderantemente vermelhos e cabelos cobertos com lenços floridos. Os homens com seus chapéus, coletes, calças e botas pretos e camisa branca com mangas compridas, largas e folgadas. No meio, um violino era tocado com veemência.
Até aí, era apenas um festejo com dança típica que ele já conhecia. Mas havia algo sinistro, um elemento alheio ao rito padrão. Uma senhora com indumentária cigana passava com uma bandeja diante dos convivas, servindo uma bebida de coloração vermelha.
Um calafrio dominou a coluna vertebral de Bence quando o violinista, ao mirar de soslaio, desconcentrando-se da cadência ressonante, abriu os olhos surpresos, avistando-o e parando de tocar o instrumento, compelindo todos os foliões a sossegarem-se.
Uma das dançatrizes acenou e gritou para Bence:
– Jumata!
Estudioso da mitologia fino-húngara e seus personagens e desdobramentos, Bence sabia ser Jumata o Deus do céu e do trovão. Todavia isto o assustava menos do que o fato de conhecerem-no.
Paralisado, Bence contemplou os sectários formando uma fila indiana e peregrinando em seu destino. Quando nele chegaram, cercaram-no em círculo.
Bence, agora Jumata, ingeriu o líquido argiláceo avermelhado a ele estendido. Sua respiração ficou mais graciosa, sua face, mais frágil. A bebida era doce, não queimava na língua, não suprimia o seu estado de consciência. E, mesmo não sendo alucinógeno, alterou sua compreensão de si próprio.
Sentindo o ar penetrar mais suavemente em seus pulmões, ao recostar a nuca na região superior de seu dorso, Jumata certificou-se que o céu continuava azul, porém, não mais azul força aérea, como todo o peso militar das regras da vida adulta em cima das suas costas, mas, sim, azul bebê, bem mais clarinho, bem mais limpo, quase um azul Alice, remetendo-o à época de maravilhas em que ainda não era proibido sonhar.
Doía, era verdade, mas tudo na vida tem um preço e o montante cobrado pela esperança era a dor. Jumata via-se perdido, entretanto, com a concepção de que detinha um prazo maior de existência para livrar-se das amarras que com ele vieram ao mundo.
Cada um dos adeptos agradeceu o Deus do céu e do trovão pelo fim dos temporais. Jumata sabia que não era nada disto, mas também estava grato pela estiagem que preservou as marcas de pneus, os fragmentos de vidro do farol e os vestígios de seu solado. Sem este capricho da natureza, não teria ele encontrado a rota que lhe revelaria sua furtiva identidade. A consistência pastosa do suco vermelho permitia que Jumata acalentasse a agonia com a fúria voraz de seus dentes, que não eram mais de leite.
***************************************** III *****************************************
A descoberta e o sentido
As semanas que se sucederam escorreram como areia entre os dedos de Bence. Recobrada sua conduta socialmente aceitável, rapidamente, o dia da bizarrice foi completamente esquecido pelos executivos. A repetição de suas maneiras normais de outrora, salvaguardou o apreço que mantinham por ele.
Novos projetos de trabalho vieram ao escritório de Bence. Conhecedor que agora era de seu íntimo, quis ir além de seus atributos como líder do departamento de propaganda. Empolgado, recebeu autorização para realizar tarefas de campo, desviando-se de sua função.
Chamou a atenção da revista Piacgazdaság o crescente turismo de Budapeste. Uma onda excursionista, principalmente oriunda da Sérvia, da Romênia e de outros países convizinhos do leste europeu, tomou conta da Hungria. Uma reportagem acerca deste fenômeno mercadológico seria publicada e Bence, investido na fase atual de sua carreira, assumiu a dianteira, e foi entrevistar o presidente da empresa promotora de eventos responsável pela ascensão deste nicho.
Ao coletar os dados iniciais e examinar as informações, Bence detectou que estava pisando em terreno movediço. A companhia turística era gerenciada pela máfia húngara, que perpetrava o seu péssimo procedimento de assassinar os seus concorrentes. Como os seus traços de personalidade eram avessos a pressuposições, não computou nenhum cálculo antes de mergulhar de cabeça no reverso e defrontar-se com as circunstâncias concretas da trama.
Sua assistente agendou seu encontro com o senhor Balázs. Quando estacionou o seu automóvel no pátio da empresa Utazás, Bence ficou deslumbrado com tamanha ostentação. O acesso aos corredores que levavam à sala de imprensa era forrado com um tapete persa e totalmente revestido com pastilhas de mármore confeccionadas artesanalmente sob medida e lapidadas em detalhes dourados.
Ao contrário do que idealizara, o senhor Balázs não o aguardava num espaço propício para conferências. O diálogo ocorreu no camarote supradisposto de um auditório de teatro. Balázs gostava mesmo de exibir seu luxo. No palco, uma encenação de dança erudita era representada. A música, de tão agradável, não era empecilho para a conversa. E os gestos leves dos dançarinos davam o tom pacato para que as interlocuções acontecessem com amenidade. A lonjura considerável daquela instalação da plateia para o cenário também cooperava com a privacidade dos dois homens.
O senhor Balázs não poupava adjetivos para supervalorizar a importância de sua empreitada turística para a economia húngara em virtude de sua contribuição para o produto interno bruto. Para ele, a publicação de um artigo na revista de negócios mais célebre do país era uma cartada conveniente para fortalecer a sua posição perante o governo federal e angariar recursos financeiros provindos dos cofres públicos pelas leis de incentivos fiscais ao turismo.
Bence, por seu turno, que não resguardava simpatia nenhuma por privilégios e apadrinhamentos, era uma presa complexa para os argumentos tendenciosos do mafioso. Apenas havia aceitado o encargo devido ao seu interesse conceitual por organizações criminosas e pela adrenalina obtida na atuação no âmbito do jornalismo investigativo. Balázs, um ilustre orador, utilizava os ínterins de clímax do espetáculo, aproveitando-se da desatenção de Bence, para nele inculcar as premissas mais vantajosas para a companhia Utazás.
E foi percebendo a distração explícita de seu interlocutor, que Balázs valeu-se de seus discursos mais sórdidos. O indivíduo perverso não entendia por quê, mas era tão profunda a introspecção do periodista, que ele presumiu poder falar o que quisesse que Bence consentiria caladamente.
Mas as indecências de Balázs só poderiam estar provocando algum efeito se fossem no plano inconsciente porque Bence já não ouvia mais nada. Ele reconheceu a bailarina que preencheu o centro do tablado: era Boglárka.
O fluxo rítmico da moça sacudia diretamente dentro da cacholinha confusa de Bence. Se para ele já era um incômodo a arte e a desenvoltura talentosa de sua amada, muito mais se acentuava o desalento quando executadas naquele covil gângster.
O chefão indecoroso mencionou um encontro que tivera com Bence, naquele mesmo lugar, há aproximadamente dois meses, que, por suas contas, calhou na véspera do desvendamento de seus rastros. Bence não tinha lembrança do evento e muito menos de ter demonstrado contentamento pela mesma atração, conforme rememorou Balázs, ao interpretar erroneamente o assombro dele. A alusão fez Bence conceber a justificativa de sua tormenta que culminou no acidente.
Atordoado, Bence lançou mão de todas as concordâncias pertinentes para que Balázs deixasse-o partir em paz.
Ao engatar a marcha ré do Trabant e acelerar por alguns metros, Bence viu a suntuosa edificação diminuir de tamanho em relação à distância que tomava. Era uma espécie de despedida proporcionada pelo vislumbre da última imagem necessária para assentar a certeza de que era a ocasião cabida do ponto derradeiro. Os acontecimentos haviam enveredado por meandros que garantiam não restarem dúvidas de que os eixos dos valores mais essenciais foram abalados.
Já na estrada, contornando o deflúvio hídrico que tanta companhia fizera-lhe em seus ápices de solitude ao volante, Bence determinou que a valsa de Johann Strauss II seria o seu fundo musical imaginário mais adequado para o desfrute de seu flerte final com o segundo maior rio da Europa.
Pelo mesmo vão de ingresso ao bosque, na quota de extensão isolada que lhe cabia, embrenhou-se na mata até topar com uma amoreira. E, em seu galho mais espesso, amarrou o cabo com laço que untaria o seu gargalo.
– Jumata!
Era Boglárka, vociferando em tom tênue. Com seus olhos complacentes e aspecto racional, denotava bem mais sapiência do que o seu sorriso social permitia que se inferisse.
Bence, intrigado, já não sabia mais de qual dos dois universos paralelos a sua querida conhecia-o.
Fixando os olhos embaralhados do seu escolhido, Boglárka procurou descansá-lo:
– Você acha mesmo que o meu amor por você existiria se eu não conhecesse a sua alma, Jumata?
***************************************** IV *****************************************
Aos domingos, a família almoçava no jardim. Boglárka trazia à mesa o pimentão ao alho. A vida em Miskolc era bem singela.
Hadúr, brincando debaixo da árvore, lançava as pequenas frutinhas cor de vinho umas contra as outras como se fossem bolinhas de gude.
– Hadúr, o almoço está pronto!
A criança corria sem camisa para junto dos pais, sob o sol tímido de dezembro do hemisfério norte, com seus dedinhos e boca pintados com a seiva vermelha. Suas costas eram inteiramente brancas, sem nenhum machucado.
Marcelo Garbine
Essa também é legal!
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