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O assento é do Pinto
Crônica de humor didática – Reforma ortográfica – Acentuação gráfica

PRÓLOGO

Você queria aprender gramática e desistiu porque não está com vontade? Isto é porque, além de desleixado, você também é um desinformado que não conhece o novo método didático do Mingau Ácido. Este método consiste na leitura de crônicas de humor, fora do padrão convencional, que ensinam regras gramaticais, de um jeito que torna um pouco menos insuportável o que não descia pela sua goela.

Nesta crônica, aprenderemos:

* O que são palavras homônimas, homógrafas e homófonas

* “Que raios” fizeram com o tal do acento diferencial? Ele existe ainda depois da nova reforma ortográfica?

É isto que saberemos, agora, através de uma história tragicômica. A tristeza de uns é a felicidade de outros. Como nem você e nem eu temos culpa pela maldade que fizeram com o personagem dessa crônica, vamos relaxar e gozar (gozar significa divertir-se, nesse caso) e aprender com fatos hilários do passado. Eu também não queria que a Segunda Guerra Mundial tivesse acontecido, mas, já que aconteceu, aprendo com os livros de História. Então...



O ASSENTO É DO PINTO

Mingau Ácido (Marcelo Garbine)



O ser humano é um animal que reclama de tudo. Não gostamos de quem é diferente da gente e nem das mudanças que fazem com que as coisas passem a ser distintas do que estamos acostumados. Queremos que tudo aconteça da maneira que planejamos e deleitamo-nos somente com as pessoas que possuem os mesmos valores que nós. Eta, bichinho “forgado” que é esse tal de ser humano.

Está certo. Eu sou ser humano também. Por isso que eu tenho que fazer uma força descomunal para não cair no lugar-comum de ficar fazendo críticas do tipo: “creeeedo! Ele não gosta desse livro? É tão bom!” ou “Como pode alguém não gostar desse filme? É um dos meus preferidos”. Eu não sou termômetro de porcaria nenhuma. E você também não é.

Isso vale para a nossa relação com as pessoas, com o tempo, com as leis da natureza e com a ordem dos acontecimentos.

Eu nunca fui muito com a cara desse negócio de ficar reclamando que tá frio ou tá calor. Eu taco logo uma blusa ou tiro a blusa e mando ver. Mas... algumas pessoas apreciam fazê-lo e, como não sou irmão gêmeo por parte de preferências e costumes de ninguém, não vou meter o pau (no bom sentido) pelas costas ou pela frente em ninguém.

Nessa última reforma ortográfica, foram feitas pequenas mudanças na forma como estamos acostumados a escrever. Não mudou muita coisa, mas foi o suficiente pra mexer com a almofadinha confortável da galera: “Eu aprendi desse jeito na escola, caramba!”.

Vai chorar as pitangas em outra freguesia, amigão. Imagina quanto não sofreram os nossos avós, nos anos trinta, com a reforma ortográfica que os obrigou a começar a escrever “farmácia” em vez de “pharmácia”. E aquele monte de crases que existiam no meio das palavras? Vixi... Parecia outro idioma. E aquela porrada de acentos diferenciais que caíram nos anos setenta? Então, não vamos reclamar de barriga cheia.

Quando tive contato, pela primeira vez, com as novas regras de acentuação, meu pensamento viajou para uma galáxia muito distante, pra lá de onde Judas perdeu as botas na linha do tempo da vida... Pensando bem, acho que ele perdeu foi as meias porque as botas, ele perdeu antes. Então deixa eu discorrer logo sobre o que eu quero dizer, se não o tempo passará mais ainda e eu vou ter que dizer que Judas perdeu o dedão do pé, naquele tempo... (suspiro).

Era uma manhã ensolarada, igualzinha a essas que temos o prazer, de vez em quando, de viver hoje. A diferença era que o meu cocuruto tinha mais cabelo. Eu tinha quinze aninhos.

O meu professor de língua portuguesa era um senhor bem avolumado lateralmente e usava óculos com armação de casco de tartaruga. Ele entendia do assunto, mas tinha os seus motivos para ser tímido e inseguro. Como alguém pode viver vinte e quatro horas por dia com vergonha de algo que não foi culpa dele? Foi culpa dos progenitores dele.

Os pais do meu querido mestre eram ibéricos muito cultos. Admiradora da arte e da literatura, a mãe do docente era uma espanhola sisuda “a quién le encantaba mucho Pablo Picasso” e também os romances hispânicos do século XVII. E o pai dele era um portuga bigodudo que adorava fazer as vontades da sua senhora. Dona Carmen Lopez e Seu Manoel Pinto formavam um típico casal luso-castelhano.

Batizar os filhos com nomes que homenageiam pessoas culturalmente aclamadas que admiramos é uma boa ideia, não acham? Huuuummmmm.... não se essas pessoas forem estimadas pela dona Carmen. Quando grávida do catedrático, lia “La vida del Buscón”, um de seus romances preferidos, escrito por Francisco de Quevedo, cujo personagem principal é Pícaro, e teve a brilhante ideia de agraciar seu futuro pimpolho, que ainda feto era, com o nome de Picasso Pícaro. Eeeee laiá, homenagem boa! O menino seria chamado de Pícaro Picasso Pinto. Como ela poderia imaginar que, no futuro, ficariam fazendo gracejos e “trocadalhos do carilho” com o designativo do pequerrucho dela? Seu querido rebento cresceu e tornou-se professor de português.

Toda quarta-feira era dia de aula daquele homem engraçado, a quem, carinhosamente, demos a alcunha de Pi-Pi-Pi, ou, simplesmente, Pi-Pi, fazendo uma analogia dupla com o título da certidão de nascimento do coitado: uma de abreviatura e outra semântica.

Tio Pi-Pi entrou na classe, com o seu típico andar desengonçado, e, como sempre, olhou para o chão, ao dar-nos bom dia e dizer que, naquela aula, falaríamos sobre acentuação gráfica.

Os alunos, que tinham sérias dificuldades para respeitar a insigne do catedrático, continuaram duelando com suas lapiseiras e bolinhas de papel, sem dar a mínima bola para o gordão que ali pairava. Na suntuosa banca destinada ao educador, estava o Rodrigo, o mais fanfarrão de todos os adolescentes, que se recusava a abandonar o local.

Os colegiais não sabiam se ficavam com dó do cafona esquisito ou se terminavam de achincalhá-lo. Na dúvida, fizeram os dois: solidarizaram-se com o cavalheiro jeca e, ao mesmo tempo, colocaram as manguinhas de fora e lançaram mão de seus venenos, aos berros e em coro:

– o assento é do Pi-Pi! O assento é do Pi-Pi! O assento é do Pi-Pi!

Coitadinho do tio Pi-Pi...

Assento e acento são palavras homófonas. O que são palavras homófonas?

Palavras parônimas: despensa (local em que se guardam alimentos) e dispensa (verbo dispensar). Essas palavras possuem grafias e pronúncias semelhantes. Uma dica para lembrarmos o significado de palavras parônimas é focarmos no radical dessa palavra: PARônimas lembra PARecidos. Palavras parônimas são palavras que se parecem.

Palavras homófonas: cozer e coser. Possuem a mesma pronúncia, mas são escritas de formas diferentes. Cozer significa cozinhar e coser significa costurar. Se essas palavras estiverem num texto, podemos distingui-las pela grafia, mas se forem pronunciadas, só podemos saber os seus significados pelo contexto do que está sendo dito. Mais um macetinho pra você: coZer é grafado com Z de coZinhar e coSer é grafado com S de coSturar. “Homo” exprime a noção de igual e “fona” exprime a noção de som. Homófono = som igual, porém grafias diferentes.

Palavras homógrafas: colher pode ser um substantivo ou um verbo. No caso de ser um substantivo, trata-se da colher que usamos para comer e, sendo um verbo, refere-se à colheita de uma horta, por exemplo. A grafia é a mesma, mas o significado e a pronúncia são diferentes. Quando nos referimos à colher com a qual comemos, dizemos “colhér” (com sonoridade de acento agudo no E) e quando a referência é a colher algo, dizemos “colhêr” (com sonoridade de acento circunflexo no E). É óbvio que, em ambos os casos, o acento não existe e foi aqui utilizado exclusivamente com o fim de ilustrar didaticamente. “Homo” exprime a noção de igual e “grafa” exprime a noção de escrita (grafia). Homógrafa = mesma grafia, porém sons diferentes.

Palavras homônimas: possuem a mesma pronúncia e a mesma grafia, mas seus significados são diferentes. O “canto da sala” e o “canto do pássaro” são bons exemplos de palavras homônimas. Nos dois casos, escrevemos e pronunciamos do mesmo modo. É impossível confundir os dois cantos, a não ser que no canto do quarto esteja o criado-mudo e ele esteja tentando, inutilmente, cantar, em vão: “huuuummmm... huuuummmm...”. O pobrezinho vai esforçar-se adoidado e não vai sair som nenhum porque ele é mudo. Não vai conseguir cantar nem que a vaca tussa.

Aqui, aproveito para falar sobre uma das mudanças que ocorreu, na acentuação das palavras, com a nova reforma ortográfica:

Antes da reforma: a preposição para (Pedrinho mostra o dedo do meio para todos) e o verbo parar, na terceira pessoa do singular do presente do indicativo (Pedrinho para de mostrar o dedo do meio) eram palavras homófonas porque “para”, quando verbo, era acentuado (pára).

Depois da reforma: para (preposição) e para (verbo) passaram a ser palavras homônimas, porque se deixou de acentuar o para (verbo). Agora, escrevemos e falamos essas duas palavras, com significados totalmente diferentes, da mesma forma. Mas, no contexto do que se é dito, torna-se inviável a confusão entre elas. E o Pedrinho tem mais é que tomar uns cascudos para largar de ser mal educado.

Os sapientes telespectadores do doutor João Kleber, quando desfrutam a erudição de seus espontâneos e nada combinados “testes de fidelidade”, estão cientes que o “para para para” exclamado com estridência pelo eminente comunicador (sem intenção nenhuma de embromar para segurar a audiência, toda vez que a mulher do corno ameaça tirar a roupa para o Ricardão) não tem mais acento. Acentos são economizados pelas prodigiosas mentes dos telespectadores do João Kleber, com alto poder imaginativo, que visualizam a grafia correta de todas as palavras ditas oralmente pela sumidade que apresenta programas de TV para intelectuais.

Se você for um cidadão ocupado e hiperativo, sem tempo para encaixar o hábito da leitura na sua lista de afazeres, e estiver aproveitando um sinal vermelho de trânsito para ler essa crônica, caso perca a concentração e bata o seu carrinho, vai amassar o seu para-choque (sem acento). O “para” que compõe essa palavra composta é oriundo do verbo parar, pois o utilitário que possui a função de proteger a sua caranga e evitar maiores danos provocados por um sinistro para (do verbo parar) o choque de uma batida. Antes da última reforma ortográfica, você acentuava o dito cujo e amassava o seu pára-choque (com acento agudo no primeiro A).

O mesmo fenômeno ocorreu com pelo (substantivo) e pelo (preposição). Da mesma forma que para (verbo) era acentuado para diferenciar-se de para (preposição), o substantivo pelo também era acentuado para diferenciar-se da preposição pelo.

Pelo amor à língua portuguesa, caiu a ficha dos gramáticos e eles perceberam que não existia perigo de confundir-se o “rato caminhando pelo esgoto” com o “pelo do rato”. Então, agora, eu não escrevo mais “um piolho-da-púbis (também conhecido como chato) caminha pelo (sem acento) pêlo (com acento circunflexo) do meu saco” e, sim, “um piolho-da-púbis caminha pelo pelo do meu saco” (sem acento, em ambas as classes gramaticais). De qualquer forma, o piolho-da-púbis é um pentelho que gosta do meu pentelho e enche o meu saco. Um chato que enche o saco no saco de outro chato.

Nessa altura do texto, você deve estar procurando uma FORMA de guardar todas essas novas informações, que além de chatas, vêm bem na hora que bate aquela fome... Imagina só um delicioso frango assando numa FÔRMA (ou numa FORMA). Sim, pela regra de acentuação gráfica, você pode escolher se acentua ou não o substantivo FORMA. Se você achar que corre o risco de confundir forma com fôrma, você acentua. Se você for menos paranoico e chegar à conclusão que não corre esse risco, escreve sem acento dos dois jeitos mesmo. Ou seja, “a forma que eu encontrei de fazer algo” não leva acento e “a forma com a qual eu fiz o bolo” pode ser acentuada ou não.

Em todos os casos de acentuação citados até agora (em para, pelo e forma), chamamos esse tipo de acento de “acento diferencial” porque ele não se enquadra em nenhuma regra própria de acentuação e era utilizado apenas pela necessidade de diferenciar as duas palavras. Como se chegou ao consenso que essa diferenciação era mais inútil do que cinzeiro em moto, mandou-se essa regrinha dos diachos para “as cucuia”, nos casos de “para” e “pelo” e facultou-se o acento no caso explanado de “forma”.

Para os diretores daquele lauto colégio, o que fizeram com o tio Pi-Pi foi apenas uma zombaria cruel, mas para os alunos que estavam atentos, houve uma grande oportunidade de aprender gramática. Assim que os jovens precoces perceberam a analogia entre o atrevimento do Rodrigo e a matéria que seria lecionada, naquele dia, tudo se tornou uma festa e pôde-se aprender brincando, como numa crônica do Mingau Ácido.

Rodrigo cedeu ao clamor público juvenil e saiu da cadeira do grão-mestre. Saiu rindo, mas saiu. E, então, o Sr. Pi-Pi pôde sentar-se. O que é mais digno do que se poder sentar no pipi. Isso é pra gente aprender que não importa o quanto as coisas estejam ruins, tudo pode piorar, caso não tomemos o devido cuidado.

Aqui, aproveito para falar sobre uma exceção do conjunto de regras de acentuação gráfica, de acordo com a nova reforma ortográfica:

Repare que, no penúltimo parágrafo, eu disse que “o Sr. Pi-Pi PÔDE sentar-se” e “não importa o quanto as coisas estejam ruins, tudo PODE piorar”. Na primeira oportunidade, utilizei o verbo poder na terceira pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo, e, na segunda oportunidade, utilizei-o na terceira pessoa do singular do presente do indicativo.

Antes da reforma ortográfica: as duas palavras, que são formas de escrever o mesmo verbo em tempos verbais diferentes, eram palavras escritas e pronunciadas de forma diferente.

Depois da reforma: não mudou nada, continua tudo a mesma mer... a mesma merecida coisa, como se fosse um caminhão cheio de japoneses.

Aqui está uma boa notícia pra você, seu preguiçoso lazarento, que só quer sombra e água fresca e prefere que as coisas não mudem para não precisar aprender de novo: nesse caso, o acento diferencial não caiu em desuso.

– Eba! – seria o grito dos alunos do mestre Pi-Pi, se eles estivessem lendo essa geringonça.

Mingau Ácido (Marcelo Garbine)

Texto publicado na Revista Literária da Lusofonia – Décima Quarta Edição – junho de 2015 – Páginas 75 à 78.

A versão em vídeo desta crônica pode ser assistida na subseção Crônicas em Vídeo da seção Vídeos deste site.

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